Na última eleição americana, o mundo assistiu a uma das mais consolidadas democracias balançar. O Congresso americano foi atacado de forma impensável, ante uma inédita polarização. Por aqui, numa democracia bem menos consolidada, temos uma polarização que só parece crescer, cercada de manifestações e atos violentos que estão sendo coibidos pelo Poder Judiciário com a utilização da lei 7.170/83, que define os “crimes contra a segurança nacional, ordem política e social”.
Editada no período ditatorial, a norma, após a redemocratização, foi utilizada de forma pontual, mas ganhou sobrevida com a instauração do inquérito que apura as chamadas manifestações antidemocráticas.
Não se trata apenas de lei feita especificamente para garantir o estado totalitário da época. Para além disso, os tipos penais são demasiadamente abertos e com penas absolutamente desproporcionais. A título de exemplo, pune com pena de até 15 anos de reclusão a tentativa de mudança da “ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”, mediante violência ou grave ameaça. De início, o tipo penal não diz nada de específico, precisando ser interpretado, o que é incompatível com o direito penal.
Por outro lado, punir uma incitação, ainda que por grave ameaça, com pena que pode ser superior a de um homicídio, parece descabido. A lei confunde os chefes dos Poderes com as instituições e pune delitos contra a honra dos presidentes dos Poderes com pena mais alta que o Código Penal, que já tem uma proteção própria a funcionários públicos e ao presidente da República.
Nos últimos dias, manifestações contrárias ao presidente da República, publicadas nas redes sociais, geraram inquéritos com base nessa lei, o que motivou intenso debate sobre sua (in)constitucionalidade. Aliás, alguns artigos já estão sendo questionados no STF, com alentado parecer de respeitados juristas. Busca-se proteger a liberdade de expressão e impedir que a lei seja utilizada para calar os críticos do presidente, tese com a qual concordo. Mas, há que se lembrar: pau que bate em Chico bate em Francisco.
O deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) foi preso com base nessa mesma lei, que também pune com pena de um a quatro anos quem caluniar ou difamar os presidentes dos Poderes, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação. Um artigo utilizado prevê aumento de pena quando a propaganda de processos violentos ou ilegais for feita por rádio ou televisão (a lei de 1983, por óbvio, não contemplava a internet).
O direito penal não admite “puxadinhos” e não se pode cogitar na utilização de interpretações extensivas para punir quem quer que seja, ainda que estejamos diante de um deputado que efetivamente representa um risco à democracia. O deputado não ofendeu o presidente da Suprema Corte: ofendeu vários ministros, mas não exatamente o presidente. Rádio e televisão não se confundem com a rede mundial de computadores.
Ressalto que não estou defendendo a impunidade de agressões ao regime democrático ou de incitação de agressões aos ministros do STF, até porque já me manifestei, concordando com os limites da liberdade de expressão fixados pelo Supremo, inspirado na Suprema Corte Americana e, portanto, com a tese de que ameaças e atentados às instituições ou agentes públicos não estão protegidos pela lei —nem muito menos pela Constituição, que protege a liberdade de emitir opiniões de qualquer ordem, e não agressões de qualquer ordem.
O que não é possível é punir esses atentados com base em interpretações de uma lei inconstitucional.
Defendo segurança jurídica, alertando que nossas instituições e democracia estão sem proteção. É urgente a edição de nova norma que coíba, de forma justa e proporcional, os atentados ao Estado de Direito. Nosso presidente contestou o processo eleitoral mesmo quando venceu. Tudo indica que viveremos momentos piores que os americanos e, sem uma nova lei, não teremos como punir atos e manifestações ilegais. Qualquer punição será contestada como ocorre no momento, em que só temos uma lei de insegurança nacional.