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Preconiza-se a resposta estatal ao direito individual, porque se desconfia da boa-fé dos sujeitos

“Como a sociedade clama por justiça e o sentimento geral é de impunidade, a lógica parece ser a de: se a questão chegou aos tribunais, o sujeito deve ser vigarista.”

Todo o direito brasileiro funda-se no princípio da boa-fé objetiva, um conceito ético de conduta moldado nas ideias de proceder com correção, com dignidade, pautando a atitude nos princípios da honestidade, da boa intenção e no propósito de a ninguém prejudicar. Segundo a jurisprudência: a boa-fé se presume, de forma que a má-fé é que deve sempre ser comprovada.

A boa-fé subjetiva deflui da garantia constitucional à presunção de inocência, “princípio reitor do processo penal”, segundo Aury Lopes Jr. Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, reza o artigo 5º da Constituição.

No direito penal econômico, então, da junção das regras civis e penais parece não haver dúvida de que, ao aplicar o direito ao caso concreto, os juízes devem presumir a boa-fé e a inocência, até que se prove o contrário.

Não é o que se vê, porém. Na prática, usa-se o brocardo in dubio pro societate, que nem princípio é, para instaurar ações penais.

Não são raros os casos de sonegação em que basta a inscrição na dívida ativa, baseada em responsabilidade objetiva da pessoa jurídica para a responsabilização criminal de seus representantes, independentemente do fato de que na esfera criminal vigora apenas a responsabilização subjetiva. Presume-se a má-fé simplesmente pelo não recolhimento de tributos.

Situação semelhante ocorre, no âmbito da Lei de Lavagem, no tocante ao sequestro de bens, bastando que se atribua a alguém a suposta prática delitiva para que seu patrimônio possa ser constrito, sendo que a liberação se dá apenas com a comprovação da licitude da origem dos bens, o que nem sempre é tarefa simples.

Nas prisões cautelares a imaginação vai longe. Fala-se em risco de fuga, possibilidade de dilapidação patrimonial, interferência na prova, etc. Eventos futuros e incertos. Não à toa, decisões mal fundamentadas são o principal motivo de concessão de habeas corpus no STF (Supremo Tribunal Federal).

Preconiza-se a resposta estatal ao direito individual, porque se desconfia da boa-fé dos sujeitos. Aliás, a discussão utilitarista no STF sobre a possibilidade de prisão em segundo grau de jurisdição, quando o texto constitucional claramente prevê que tal só seria possível após o trânsito em julgado, é um sintoma da “doença” que se espraia nas instâncias inferiores. Tanto que bastou um mero vacilo no Supremo para diversas autoridades judiciais implementarem, de imediato, a prisão em segundo grau.

Enfim, há muita predisposição para voluntarismos e pouca atenção aos princípios.

Sob o prisma sociológico, como a sociedade clama por justiça e há um sentimento geral de insegurança e impunidade, a lógica parece ser a seguinte: se a questão chegou ao ponto de ser trazida às barras dos tribunais é porque o negócio jurídico retratado provavelmente deve ser ilícito e o sujeito vigarista. Se o negócio tem alguma complexidade, então, é comum o acréscimo da suspeita de lavagem. A desigualdade social, os elevados índices de pobreza e desemprego, e uma tradicional aversão ao lucro e sucesso alheios contribuem para o agravamento da lógica da boa-fé, que é potencializada pelas redes sociais.

Fora do ambiente de negócios, é incontável o número de pessoas submetidas à revista pessoal simplesmente pela cor de sua pele, por serem tatuadas, ou, como certa feita disse um policial militar, por terem “cara de bandido”.

Essa inversão parece decorrer de um sentimento de preconceito e intolerância, de obsessão e histerismo possivelmente mais bem explicados pela psicanálise, segundo a qual a formação de categorias, a partir de estereótipos, “dá uma sensação de segurança”, projeta-se nessas pessoas “sentimentos de insuficiência, ignorância e desconforto”. De acordo com Claudio Eizirik: “Uma das hipóteses psicanalíticas é que o outro... é uma lata de lixo para nossas próprias insuficiências. Freud descreveu com a expressão ‘narcisismo das pequenas diferenças’, a curiosa tendência humana a exagerar as diferenças entre grupos vizinhos ou semelhantes para sentir-se supostamente superior”.

Infelizmente, a ciência ainda não nos dá condições de conhecer as razões de foro íntimo dos aplicadores do direito. Entretanto, basta notar a vida cotidiana para perceber que regredimos do pensamento científico para um pensamento mais animista e passamos a acreditar em simplificações-generalizações do tipo: “Nesse país, só tem bandido”.

No texto “O Mal-Estar na Civilização”, Freud tenta explicar a agressividade com a qual lidamos uns com os outros. O texto, cuja leitura se recomenda, traz motivos ainda mais íntimos que podem justificar pensamentos imperfeitos como a desconfiança no outro e a predileção pelo rigor da punição.

Perguntada pela revista Time se depois de décadas de pesquisas poderia responder se os humanos tendem mais para o bem ou para o mal, a renomada especialista em comportamento animal Jane Goodall respondeu que eles têm igual capacidade para ambos. “O ambiente que criamos vai determinar o que prevalece”, disse ela. “Em outras palavras, o que nutrimos e encorajamos vence.” Ou seja, “Quer nos concentremos na possibilidade do bem ou na inevitabilidade do mal”, é mais uma questão de escolha.

Parece-nos, portanto, que a boa-fé e a presunção de inocência “escolhidos” pelo direito alinham-se, esperançosamente, à possibilidade do bem, enquanto sua subversão parece encontrar base na crença da inevitabilidade do mal.

Com curiosidade científica, precisamos enfrentar a crescente complexidade do mundo em que vivemos, até para fomentar o debate sobre essa exacerbação paranoica, desesperançada, que, em termos civilizatórios, é genuinamente perturbadora.

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Preconiza-se a resposta estatal ao direito individual, porque se desconfia da boa-fé dos sujeitos

“Como a sociedade clama por justiça e o sentimento geral é de impunidade, a lógica parece ser a de: se a questão chegou aos tribunais, o sujeito deve ser vigarista.”

Todo o direito brasileiro funda-se no princípio da boa-fé objetiva, um conceito ético de conduta moldado nas ideias de proceder com correção, com dignidade, pautando a atitude nos princípios da honestidade, da boa intenção e no propósito de a ninguém prejudicar. Segundo a jurisprudência: a boa-fé se presume, de forma que a má-fé é que deve sempre ser comprovada.

A boa-fé subjetiva deflui da garantia constitucional à presunção de inocência, “princípio reitor do processo penal”, segundo Aury Lopes Jr. Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, reza o artigo 5º da Constituição.

No direito penal econômico, então, da junção das regras civis e penais parece não haver dúvida de que, ao aplicar o direito ao caso concreto, os juízes devem presumir a boa-fé e a inocência, até que se prove o contrário.

Não é o que se vê, porém. Na prática, usa-se o brocardo in dubio pro societate, que nem princípio é, para instaurar ações penais.

Não são raros os casos de sonegação em que basta a inscrição na dívida ativa, baseada em responsabilidade objetiva da pessoa jurídica para a responsabilização criminal de seus representantes, independentemente do fato de que na esfera criminal vigora apenas a responsabilização subjetiva. Presume-se a má-fé simplesmente pelo não recolhimento de tributos.

Situação semelhante ocorre, no âmbito da Lei de Lavagem, no tocante ao sequestro de bens, bastando que se atribua a alguém a suposta prática delitiva para que seu patrimônio possa ser constrito, sendo que a liberação se dá apenas com a comprovação da licitude da origem dos bens, o que nem sempre é tarefa simples.

Nas prisões cautelares a imaginação vai longe. Fala-se em risco de fuga, possibilidade de dilapidação patrimonial, interferência na prova, etc. Eventos futuros e incertos. Não à toa, decisões mal fundamentadas são o principal motivo de concessão de habeas corpus no STF (Supremo Tribunal Federal).

Preconiza-se a resposta estatal ao direito individual, porque se desconfia da boa-fé dos sujeitos. Aliás, a discussão utilitarista no STF sobre a possibilidade de prisão em segundo grau de jurisdição, quando o texto constitucional claramente prevê que tal só seria possível após o trânsito em julgado, é um sintoma da “doença” que se espraia nas instâncias inferiores. Tanto que bastou um mero vacilo no Supremo para diversas autoridades judiciais implementarem, de imediato, a prisão em segundo grau.

Enfim, há muita predisposição para voluntarismos e pouca atenção aos princípios.

Sob o prisma sociológico, como a sociedade clama por justiça e há um sentimento geral de insegurança e impunidade, a lógica parece ser a seguinte: se a questão chegou ao ponto de ser trazida às barras dos tribunais é porque o negócio jurídico retratado provavelmente deve ser ilícito e o sujeito vigarista. Se o negócio tem alguma complexidade, então, é comum o acréscimo da suspeita de lavagem. A desigualdade social, os elevados índices de pobreza e desemprego, e uma tradicional aversão ao lucro e sucesso alheios contribuem para o agravamento da lógica da boa-fé, que é potencializada pelas redes sociais.

Fora do ambiente de negócios, é incontável o número de pessoas submetidas à revista pessoal simplesmente pela cor de sua pele, por serem tatuadas, ou, como certa feita disse um policial militar, por terem “cara de bandido”.

Essa inversão parece decorrer de um sentimento de preconceito e intolerância, de obsessão e histerismo possivelmente mais bem explicados pela psicanálise, segundo a qual a formação de categorias, a partir de estereótipos, “dá uma sensação de segurança”, projeta-se nessas pessoas “sentimentos de insuficiência, ignorância e desconforto”. De acordo com Claudio Eizirik: “Uma das hipóteses psicanalíticas é que o outro... é uma lata de lixo para nossas próprias insuficiências. Freud descreveu com a expressão ‘narcisismo das pequenas diferenças’, a curiosa tendência humana a exagerar as diferenças entre grupos vizinhos ou semelhantes para sentir-se supostamente superior”.

Infelizmente, a ciência ainda não nos dá condições de conhecer as razões de foro íntimo dos aplicadores do direito. Entretanto, basta notar a vida cotidiana para perceber que regredimos do pensamento científico para um pensamento mais animista e passamos a acreditar em simplificações-generalizações do tipo: “Nesse país, só tem bandido”.

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