O coronavírus nos atinge em meio a outro tipo pandemia: a politização de todos os temas, que ignora critérios técnicos, incluindo a estratégia para combatê-lo. Hoje, todos pensam entender de tudo e buscam resolver problemas técnicos em discussões nas mídias sociais.
Desrespeitar a orientação de especialistas, no entanto, pode resultar em muitas mortes evitáveis. Pode também levar à prisão quem adotar condutas que coloquem em risco a saúde pública. Nosso Código Penal prevê uma série de crimes que podem ser invocados contra tais condutas.
Pune quem infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, violando, por exemplo, regras da quarentena (artigo 268). Trata-se de delito de menor potencial ofensivo, que não levaria ninguém à prisão. Pode gerar, no máximo —e a depender da norma do poder público—, um termo circunstanciado na delegacia, mas nunca prisão em flagrante, como se especula atualmente.
Pune, igualmente, aquele que praticar ato com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, capaz de produzir o contágio (artigo 131), com pena de um a quatro anos.
Outro delito de menor potencial ofensivo é aquele que pune expor a perigo direto e iminente a vida ou a saúde de outrem (artigo 132). No entanto, se resultar morte ou lesão, pode se cogitar crime mais grave.
E é exatamente isso que deverá gerar intensas discussões no Judiciário, já que as mortes estão no centro do debate sobre o isolamento social.
Por fim, o mais grave dos tipos previstos pelo Código Penal (artigo 267): “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”. A pena é de 10 a 15 anos de reclusão, e pode ser dobrada se resulta em morte. A regra, como é comum no Brasil, é extremamente mal redigida. Já há no país uma epidemia instalada com transmissão sustentada, o que, segundo opiniões importantes, poderia impedir a aplicação de tal tipo, já que ninguém poderia causar uma epidemia que já existe. Mas o tipo de crime não foi discutido no Judiciário e não se pode excluir a possibilidade de se analisar tal norma sob o aspecto da mera propagação da epidemia de Covid-19.
No cenário atual, nossos governantes —nos termos da Constituição Federal (artigo 196), nos planos nacional, estadual e municipal— estão obrigados a garantir, mediante políticas sociais e econômicas, a redução do risco de doença e de outros agravos. Têm, portanto, a obrigação de garantir uma política de redução de riscos em relação à epidemia. Se não o fizerem, podem responder pelos atos praticados e também por omissões relevantes.
Discute-se se devemos encerrar ou não o isolamento social. Trata-se de falso dilema: devemos seguir orientações técnicas que impeçam o colapso do sistema de saúde e, consequentemente, o aumento exponencial de mortes.
A experiência italiana não deixa dúvida. Lá, argumentou-se que o país não poderia parar por conta de mortes. Deu no que deu. As autoridades que não agirem de forma a preservar vidas responderão nos termos do Código Penal. Adotar medidas contrariando deliberadamente pareceres técnicos ou deixar de adotá-las sem motivo justo e, com isso, aumentar a propagação da epidemia, causando mortes e lesões, pode constituir crime grave.
No atual momento, o governante que contrariar orientações técnicas assinará o atestado de óbito de seu mandato. Já é certo que flexibilizar o isolamento terá por efeito a disseminação ainda maior do vírus, provocando ainda mais mortes. Parece não haver dúvida que incorrerá em prática criminosa.
Espera-se que, para além do debate político, prevaleçam as medidas emanadas dos técnicos e especialistas. Se assim não for, não bastará, certamente, fazer como o prefeito de Milão, que, depois de incentivar o convívio social em plena pandemia, pediu desculpas por seu erro. É bem mais do que um erro.