O número de pedidos de Habeas Corpus impetrados no STJ tem aumentado a cada ano. Apenas neste último mês de julho – durante o recesso – ingressaram 8.451 pleitos no Tribunal Superior, número alto para uma Corte com apenas dez ministros especializados em matéria penal. Evidente que existe um problema que precisa ser enfrentado, do contrário será inviável o exercício da jurisdição.
A questão é identificar as causas dessa enormidade de pleitos. Os usuais suspeitos são os advogados e defensores públicos, sempre apontados como responsáveis pela enxurrada de recursos em defesa de seus clientes, e a recorrente proposta de solução é a restrição do uso do habeas corpus, buscando-se as mais diferentes formas de limitação ao uso desse remédio constitucional.
Mas uma análise detida dos números e da realidade aponta para outro lado. O excesso de habeas corpus não é a doença, mas sintoma de algo mais grave, que começa a ser exposto pelo próprio STJ. Em recentes declarações que merecem aplauso, os ministros Rogério Schietti e Sebastião Reis constataram que metade dos pedidos feitos no recesso impugnam decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Em regra, são acórdãos que contrariam orientações já pacificadas no STJ e do STF, como a vedação da decretação automática do regime fechado de pena em casos de tráfico de drogas ou da negativa de substituição da pena por restritivas de direitos nessas mesmas situações.
É certo que desembargadores têm liberdade de decidir com independência na interpretação das orientações das Cortes Superiores – exceto nos casos de súmulas vinculantes ou decisões em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Tambem não se ignora que o Estado de São Paulo apresenta peculiaridades diante dos notáveis problemas existentes na unidade federativa com a maior densidade populacional do país.
Mas, justamente por ter experiência em questões sensíveis, e por possuir um corpo de desembargadores com conteúdo de cultura jurídica, é importante que a Corte bandeirante se debruce sobre os números apresentados pelos ministros do STJ.
A insistência em teses contrárias àquelas pacificadas na Corte Superior, em especial quando se trata de negar direitos, notadamente o de liberdade, tem por consequência a impetração dos milhares de habeas corpus que sufocam as instâncias superiores, uma vez que é dever do advogado e do defensor público impugnar tais decisões.
Mas, mais grave, mantém sob custódia pessoas cujo direito à liberdade será reconhecido pelo STJ, apenas postergando uma liberdade certa. Como apontou Nelson Hungria, em julgamento de 1959 no STF: “Um dia de privação de liberdade jamais poderá ser substituído. O nobre advogado do paciente diz que só Deus pode reparar essa transitória perda da liberdade. Nem Deus, porém, pode fazê-lo. É a única coisa que Deus não pode fazer, tornar “desacontecido” aquilo que já aconteceu. Deus nos pode ferir de amnésia, para que esqueçamos o fato, como pode acrescer de um dia livre a vida do prejudicado, mas não pode suprimir no passado o dia de privação da liberdade” (Memoria Jurisprudencial, Nelson Hungria, STF, p.336).
Atribuir ao uso do habeas corpus o problema do excesso de feitos remetidos às Cortes Superiores é encobrir a verdadeira causa do problema. A limitação do uso do remédio constitucional tornará mais difícil o enfrentamento das decisões citadas e perpetuará injustiças. Que os diagnósticos corretos sejam feitos, que os Tribunais reflitam sobre as críticas apresentadas pelos mencionados Ministros, e que a insustentável situação seja enfrentada de forma adequada, solucionando-se o problema por sua verdadeira raiz.