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A descriminalização da posse de entorpecentes para uso próprio é uma tendência mundial. No Brasil, mesmo que ainda não se tenha uma decisão final da Suprema Corte [1], a partir da entrada em vigor da Lei nº 11.343/06, parece haver consenso no sentido de que a conduta foi objeto de despenalização no artigo 28.

Com a entrada em vigor do chamado pacote "anticrime", no início deste ano, instituiu-se a figura do acordo de não persecução penal (ANPP) como solução alternativa para o processo nas hipóteses de crimes com pena mínima inferior a quatro anos, desde que preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos previstos no novo artigo 28-A do Código de Processo Penal.

De imediato, renomados doutrinadores e articulistas apontaram, com acerto, para uma questão problemática: ao estipular que "o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime", o referido artigo permite que cada membro do MP faça a sua avaliação individual, pessoal e subjetiva sobre o cabimento do ANPP, o que contribui para a criação de um ambiente de insegurança jurídica.

A dimensão que essa subjetividade pode ganhar quando a controvérsia jurídica versar sobre a lei de drogas é preocupante. Afinal, enquanto o STF sinaliza para a inconstitucionalidade e a descriminalização do porte de entorpecentes para uso próprio, outros tribunais mantêm postura firme e rigorosa contra o usuário.

Enquanto perdura a discussão sobre a constitucionalidade da criminalização da sua conduta, o usuário, na maioria das vezes dependente químico, fica à mercê da sorte. Muito embora o ANPP seja plenamente cabível até mesmo para a figura mais gravosa do tráfico privilegiado (artigo 33, § 4º) [2], diferentes membros do Ministério Público têm visões diversas sobre a necessidade e suficiência do ANPP para reprovação e prevenção desse tipo de delito.

Em recurso recém-julgado pela 2ª Turma Recursal do TJ-SP, o Ministério Público manifestou-se contrário ao ANPP e o pedido defensivo acabou desprovido porque, segundo o representante do Parquet oficiante naquele feito, "apesar de ser primário e não ostentar maus antecedentes, já fora imposto ao réu pena de advertência, por incursão no artigo 28, parágrafo 1º, da Lei nº 11.343/06" em processo anterior. Logo, o usuário de entorpecente não preenchia os requisitos subjetivos.

Sem adentrar nos detalhes do caso, não parece juridicamente correto cogitar do não preenchimento dos requisitos subjetivos para o ANPP nas hipóteses de reiteração, na medida em que o legislador da Lei nº 11.343/06 despenalizou a conduta de porte para consumo pessoal, conforme, aliás, já reconheceu o STF, por ocasião do julgamento do RE nº 430.105/RJ, de relatoria do ministro Sepúlveda Pertence.

Ademais, a jurisprudência consolidou-se no sentido de que condenação prévia por posse/porte de entorpecente para uso próprio não gera reincidência genérica. Com efeito, assim como o STF, o STJ também sedimentou o entendimento de que viola o princípio constitucional da proporcionalidade considerar o réu reincidente por uma infração cuja pena nem sequer é a prisão.

Nas palavras da ministra Maria Thereza de Assis Moura: "Resta inequivocamente desproporcional a consideração, para fins de reincidência, da posse de droga para consumo próprio. (...) Em face dos questionamentos acerca da proporcionalidade do direito penal para o controle do consumo de drogas em prejuízo de outras medidas de natureza extrapenal relacionadas às políticas de redução de danos, eventualmente até mais severas para a contenção do consumo do que as medidas previstas atualmente, que reconhecidamente não têm apresentado qualquer resultado prático em vista do crescente aumento do tráfico de drogas, tenho que o prévio apenamento por porte de droga para consumo próprio, nos termos do artigo 28 da Lei de Drogas, não deve constituir causa geradora de reincidência" [3].

Como concluiu aquela eminente ministra: "Há de se considerar, ainda, que a própria constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que está cercado de acirrados debates acerca da legitimidade da tutela do direito penal em contraposição às garantias constitucionais da intimidade e da vida privada, está em discussão perante o Supremo Tribunal Federal, que admitiu Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 635.659 para decidir sobre a tipicidade do porte de droga para consumo pessoal, ocasião em que o ilustre relator, ministro Gilmar Mendes, votando pela descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, consignou que 'assim, tenho que a criminalização da posse de drogas para uso pessoal é inconstitucional, por atingir, em grau máximo e desnecessariamente, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas várias manifestações, de forma, portanto, claramente desproporcional'".

Nesse contexto de despenalização, com sérias perspectivas de descriminalização, uma conduta anterior, porquanto despenalizada, não implica reincidência e, desse modo, não resvala nas hipóteses elencadas no §2º do artigo 28-A, sendo, pois, perfeitamente aplicável o ANPP ao usuário contumaz que reitera a conduta do artigo 28 da Lei nº 11.343/06.

Afigura-se verdadeiro despropósito apelar para a habitualidade do consumo de entorpecente como justificativa para negar o ANPP, pois, como se sabe, geralmente, essa habitualidade decorre de dependência química, ou seja, não resulta de livre formação da vontade. Mas, ainda que se trate de posse/porte/uso recreativo, o caráter insignificante das infrações pretéritas, decorrente da despenalização, caracteriza situação excepcional autorizadora do ANPP [4].

Desse modo e tendo em vista a natureza do ANPP, principalmente os fatores que deram ensejo à criação desse instituto que visa a resolução célere dos casos menos graves, priorizando a atuação do Judiciário no julgamento dos casos mais graves e permitindo a minoração dos efeitos de uma condenação penal, creio que é direito subjetivo dos acusados em geral que haja proposta do ANPP, a ser formulada pelo Ministério Público.

Por outro lado, mesmo que não se compreenda o ANPP como um direito subjetivo do acusado, certo é que a negativa desse instituto no caso concreto não pode decorrer de arbítrio. Com efeito, "é necessário lembrar, ainda, que, ao tempo em que elaborada a Lei dos Juizados Especiais, discussão semelhante já foi travada na doutrina e jurisprudência quanto ao instituto da suspensão condicional do processo, previsto no artigo 89 do referido diploma legal" [5], sendo certo que se chegou à conclusão de que há um poder-dever que impõe ao Ministério Público o oferecimento dos institutos despenalizadores para situações reveladoras de menor potencial ofensivo.

Logo, já que a celebração do acordo mostra-se mais benéfica do que a condenação criminal, o seu oferecimento, assim como sucede com a transação penal e a suspensão condicional do processo, corresponde a um poder-dever do Ministério Público, principalmente diante de um caso de posse de entorpecente para uso próprio, mesmo habitual, conduta despenalizada e doutrinariamente classificada como "infração menor de ínfimo potencial ofensivo" [6].

É um total contrassenso, em termos de política criminal, afastar do usuário habitual de entorpecente, a possibilidade de se reconciliar com o Estado de forma mais célere e eficaz.

Urge, pois, que a jurisprudência pacifique a questão, seja para o fim de reconhecer que o oferecimento do ANPP é um pode-dever do Ministério Público, seja para o fim de declarar a inconstitucionalidade e descriminalizar o crime de posse de entorpecente para uso próprio. Com a palavra, o Supremo Tribunal Federal.

[1] Uma vez que ainda não foi concluído o julgamento do Recurso Extraordinário nº 635659-SP, interposto ainda em 2011, mas que teve início apenas em 2015, com o voto do Min. Gilmar Mendes, que lhe dava provimento. Em seguida, foram colhidos os votos do Min. Edson Fachin, que dava parcial provimento, e o voto do Min. Roberto Barroso, dando-lhe provimento. Atualmente, aguarda-se o voto do Min. Alexandre de Moraes.

[2] NETTO, José Brandão. Acordo de não persecução penal vira regra e passa ser aplicado para crimes como corrupção, peculato, furto qualificado e crimes eleitorais. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/321020/acordo-de-nao-persecucao-penal-vira-regra-e-passa-ser-aplicado-para-crimes-como-corrupcao-peculato-furto-qualificado-e-crimes-eleitorais

[3] STJ, REsp nº 1.672.654/SP, j. 21/08/2018, v.u.

[4] artigo 28, § 2º, III, parte final

[5] Ob. cit.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza citado por JESUS, Damásio E. Lei antidrogas anotada. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 57.

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A descriminalização da posse de entorpecentes para uso próprio é uma tendência mundial. No Brasil, mesmo que ainda não se tenha uma decisão final da Suprema Corte [1], a partir da entrada em vigor da Lei nº 11.343/06, parece haver consenso no sentido de que a conduta foi objeto de despenalização no artigo 28.

Com a entrada em vigor do chamado pacote "anticrime", no início deste ano, instituiu-se a figura do acordo de não persecução penal (ANPP) como solução alternativa para o processo nas hipóteses de crimes com pena mínima inferior a quatro anos, desde que preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos previstos no novo artigo 28-A do Código de Processo Penal.

De imediato, renomados doutrinadores e articulistas apontaram, com acerto, para uma questão problemática: ao estipular que "o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime", o referido artigo permite que cada membro do MP faça a sua avaliação individual, pessoal e subjetiva sobre o cabimento do ANPP, o que contribui para a criação de um ambiente de insegurança jurídica.

A dimensão que essa subjetividade pode ganhar quando a controvérsia jurídica versar sobre a lei de drogas é preocupante. Afinal, enquanto o STF sinaliza para a inconstitucionalidade e a descriminalização do porte de entorpecentes para uso próprio, outros tribunais mantêm postura firme e rigorosa contra o usuário.

Enquanto perdura a discussão sobre a constitucionalidade da criminalização da sua conduta, o usuário, na maioria das vezes dependente químico, fica à mercê da sorte. Muito embora o ANPP seja plenamente cabível até mesmo para a figura mais gravosa do tráfico privilegiado (artigo 33, § 4º) [2], diferentes membros do Ministério Público têm visões diversas sobre a necessidade e suficiência do ANPP para reprovação e prevenção desse tipo de delito.

Em recurso recém-julgado pela 2ª Turma Recursal do TJ-SP, o Ministério Público manifestou-se contrário ao ANPP e o pedido defensivo acabou desprovido porque, segundo o representante do Parquet oficiante naquele feito, "apesar de ser primário e não ostentar maus antecedentes, já fora imposto ao réu pena de advertência, por incursão no artigo 28, parágrafo 1º, da Lei nº 11.343/06" em processo anterior. Logo, o usuário de entorpecente não preenchia os requisitos subjetivos.

Sem adentrar nos detalhes do caso, não parece juridicamente correto cogitar do não preenchimento dos requisitos subjetivos para o ANPP nas hipóteses de reiteração, na medida em que o legislador da Lei nº 11.343/06 despenalizou a conduta de porte para consumo pessoal, conforme, aliás, já reconheceu o STF, por ocasião do julgamento do RE nº 430.105/RJ, de relatoria do ministro Sepúlveda Pertence.

Ademais, a jurisprudência consolidou-se no sentido de que condenação prévia por posse/porte de entorpecente para uso próprio não gera reincidência genérica. Com efeito, assim como o STF, o STJ também sedimentou o entendimento de que viola o princípio constitucional da proporcionalidade considerar o réu reincidente por uma infração cuja pena nem sequer é a prisão.

Nas palavras da ministra Maria Thereza de Assis Moura: "Resta inequivocamente desproporcional a consideração, para fins de reincidência, da posse de droga para consumo próprio. (...) Em face dos questionamentos acerca da proporcionalidade do direito penal para o controle do consumo de drogas em prejuízo de outras medidas de natureza extrapenal relacionadas às políticas de redução de danos, eventualmente até mais severas para a contenção do consumo do que as medidas previstas atualmente, que reconhecidamente não têm apresentado qualquer resultado prático em vista do crescente aumento do tráfico de drogas, tenho que o prévio apenamento por porte de droga para consumo próprio, nos termos do artigo 28 da Lei de Drogas, não deve constituir causa geradora de reincidência" [3].

Como concluiu aquela eminente ministra: "Há de se considerar, ainda, que a própria constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que está cercado de acirrados debates acerca da legitimidade da tutela do direito penal em contraposição às garantias constitucionais da intimidade e da vida privada, está em discussão perante o Supremo Tribunal Federal, que admitiu Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 635.659 para decidir sobre a tipicidade do porte de droga para consumo pessoal, ocasião em que o ilustre relator, ministro Gilmar Mendes, votando pela descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, consignou que 'assim, tenho que a criminalização da posse de drogas para uso pessoal é inconstitucional, por atingir, em grau máximo e desnecessariamente, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas várias manifestações, de forma, portanto, claramente desproporcional'".

Nesse contexto de despenalização, com sérias perspectivas de descriminalização, uma conduta anterior, porquanto despenalizada, não implica reincidência e, desse modo, não resvala nas hipóteses elencadas no §2º do artigo 28-A, sendo, pois, perfeitamente aplicável o ANPP ao usuário contumaz que reitera a conduta do artigo 28 da Lei nº 11.343/06.

Afigura-se verdadeiro despropósito apelar para a habitualidade do consumo de entorpecente como justificativa para negar o ANPP, pois, como se sabe, geralmente, essa habitualidade decorre de dependência química, ou seja, não resulta de livre formação da vontade. Mas, ainda que se trate de posse/porte/uso recreativo, o caráter insignificante das infrações pretéritas, decorrente da despenalização, caracteriza situação excepcional autorizadora do ANPP [4].

Desse modo e tendo em vista a natureza do ANPP, principalmente os fatores que deram ensejo à criação desse instituto que visa a resolução célere dos casos menos graves, priorizando a atuação do Judiciário no julgamento dos casos mais graves e permitindo a minoração dos efeitos de uma condenação penal, creio que é direito subjetivo dos acusados em geral que haja proposta do ANPP, a ser formulada pelo Ministério Público.

Por outro lado, mesmo que não se compreenda o ANPP como um direito subjetivo do acusado, certo é que a negativa desse instituto no caso concreto não pode decorrer de arbítrio. Com efeito, "é necessário lembrar, ainda, que, ao tempo em que elaborada a Lei dos Juizados Especiais, discussão semelhante já foi travada na doutrina e jurisprudência quanto ao instituto da suspensão condicional do processo, previsto no artigo 89 do referido diploma legal" [5], sendo certo que se chegou à conclusão de que há um poder-dever que impõe ao Ministério Público o oferecimento dos institutos despenalizadores para situações reveladoras de menor potencial ofensivo.

Logo, já que a celebração do acordo mostra-se mais benéfica do que a condenação criminal, o seu oferecimento, assim como sucede com a transação penal e a suspensão condicional do processo, corresponde a um poder-dever do Ministério Público, principalmente diante de um caso de posse de entorpecente para uso próprio, mesmo habitual, conduta despenalizada e doutrinariamente classificada como "infração menor de ínfimo potencial ofensivo" [6].

É um total contrassenso, em termos de política criminal, afastar do usuário habitual de entorpecente, a possibilidade de se reconciliar com o Estado de forma mais célere e eficaz.

Urge, pois, que a jurisprudência pacifique a questão, seja para o fim de reconhecer que o oferecimento do ANPP é um pode-dever do Ministério Público, seja para o fim de declarar a inconstitucionalidade e descriminalizar o crime de posse de entorpecente para uso próprio. Com a palavra, o Supremo Tribunal Federal.

[1] Uma vez que ainda não foi concluído o julgamento do Recurso Extraordinário nº 635659-SP, interposto ainda em 2011, mas que teve início apenas em 2015, com o voto do Min. Gilmar Mendes, que lhe dava provimento. Em seguida, foram colhidos os votos do Min. Edson Fachin, que dava parcial provimento, e o voto do Min. Roberto Barroso, dando-lhe provimento. Atualmente, aguarda-se o voto do Min. Alexandre de Moraes.

[2] NETTO, José Brandão. Acordo de não persecução penal vira regra e passa ser aplicado para crimes como corrupção, peculato, furto qualificado e crimes eleitorais. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/321020/acordo-de-nao-persecucao-penal-vira-regra-e-passa-ser-aplicado-para-crimes-como-corrupcao-peculato-furto-qualificado-e-crimes-eleitorais

[3] STJ, REsp nº 1.672.654/SP, j. 21/08/2018, v.u.

[4] artigo 28, § 2º, III, parte final

[5] Ob. cit.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza citado por JESUS, Damásio E. Lei antidrogas anotada. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 57.

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