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Todas as vezes que a imprensa alardeia o início de uma megaoperação da Polícia Federal, o enredo é o mesmo: centenas de agentes munidos de ordens judiciais fazem o arrastão de prisões e apreensões, diante de câmeras e repórteres eufóricos. Em casa, o cidadão revê à exaustão imagens dos detidos de terno e gravata desembarcando nas delegacias. A satisfação é geral.

O que não ganha manchetes com o mesmo rufar de bumbos são os resultados desse teatro. Investigações mal conduzidas e repletas de falhas encruam condenações e geram ainda mais impunidade. Exterminá-las se tornou a especialidade do criminalista e professor de Direito da FGV em São Paulo, Celso Sanchez Vilardi.

Pelo menos quatro megaoperações da Polícia Federal ruíram ao bater de frente com o advogado. A Operação Castelo de Areia, mais recente e também a mais polêmica dos últimos anos, é o melhor exemplo. Devido a uma sucessão de falhas da polícia, do Ministério Público e do Judiciário, gravíssimas acusações de crimes financeiros e desvio de verbas públicas contra executivos da empreiteira Camargo Corrêa caíram. Em abril, o Superior Tribunal de Justiça anulou grampos autorizados com base em denúncia anônima não juntada aos autos pela polícia. E o castelo desmoronou.

O mesmo destino tiveram a Operação Midas, que apurou fraudes no INSS, corrupção e lavagem de dinheiro; a Operação Cana Brava, sobre apropriação indébita milionária envolvendo usinas de açúcar em Araçatuba (SP); e a Operação Kaspar II, que investigou lavagem de dinheiro e evasão de divisas envolvendo empreiteiras e bancos suíços como UBS, Credit Suisse, Clariden e AIG.

Vilardi integra a linha de frente da nova geração de criminalistas brasileiros — um grupo de jovens em torno dos 40 anos de idade, mas que já encaram alguns dos mais importantes casos do país. Não por acaso, ele é um dos parceiros preferenciais do advogado e ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos nos contenciosos mais clamorosos da República.

O currículo de Vilardi é extenso. Veja abaixo a lista dos clientes mais notáveis:

Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT e um dos réus no processo que apura o esquema do Mensalão;

Eike Batista, dono da MMX investigado por irregularidades na licitação para a construção da estrada de ferro do Amapá, na Operação Toque de Midas;

Luiz Murat Filho, primeiro condenado pela prática de insider trading, o uso informações privilegiadas para atuar no mercado de capitais;

Robson Marinho, ex-deputado e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, investigado por beneficiar a companhia francesa Alston, vencedora de licitação para o fornecimento de trens ao metrô do estado;

Rafael Palladino, ex-diretor do banco Panamericano apontado como um dos responsáveis por irregularidades financeiras que levaram ao rombo na instituição.

Maria Glória Bairão dos Santos, mulher do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, investigada sobre um esquema de proteção ao ex-juiz condenado por corrupção, peculato e estelionato;

Celso Pitta, ex-prefeito de São Paulo investigado pela CPI do Banestado e morto em 2009.

Participaram da entrevista os jornalistas Lilian Matsuura, Mariana Ghirello e Maurício Cardoso.

Leia a entrevista:
ConJur — O doutor ficou famoso por conseguir derrubar pelo menos quatro grandes operações da Polícia Federal contra seus clientes. Como foi trabalhar nos casos? Celso Vilardi — Temos um resultado importante com relação a essas operações. A Operação Castelo de Areia foi a última delas. Antes, anulamos uma operação chamada Midas, que não é a Toque de Midas, que também envolve clientes meus. Esta não foi julgada ainda, mas também vou anular.

ConJur — Do que tratava a operação Midas? Celso Vilardi — Foi deflagrada em Mato Grosso para investigar fraudes contra a Previdência, envolvendo diversos empresários e fiscais do INSS. Teve início a partir de um grampo contra um fiscal.

ConJur — Em todas as operações que o doutor conseguiu anular, o grampo foi o calcanhar de Aquiles? Celso Vilardi — Assim como a Castelo de Areia, a Midas foi anulada por causa do grampo. A Operação Cana Brava, envolvendo usineiros em Araçatuba, também caiu devido ao uso de grampo. Em um contexto diferente dessas três, a operação Kaspar II [que investigou lavagem de dinheiro e evasão de divisas envolvendo bancos como UBS, Credit Suisse, Clariden e AIG e empreiteiras] não foi anulada. O que nós conseguimos foi derrubar a denúncia contra nosso cliente porque ela não cumpria os requisitos legais, o que foi acolhido no Superior Tribunal de Justiça. Nas outras três, anulando-se o grampo, esvaziou-se praticamente a operação toda. Isso gera efeitos não só para o meu cliente, mas para terceiros também.

ConJur — Em que a denúncia do MP no caso da Kaspar II era vulnerável? Celso Vilardi — Eu defendia um representante de um banco, acusado de inúmeros crimes. O caso que sustentava isso era um fato medíocre, havia dois diálogos gravados em que ele estava falando uma coisa sem qualquer significado, mas o denunciante dizia que, com base nesse dialogo, ele praticava lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Nossa defesa foi de que a acusação não estava descrita suficientemente para propiciar um contraditório. Então o STJ anulou a denúncia.

ConJur — Ao contrário do que prevê a legislação, o grampo tem sido a primeira e principal evidência nas investigações? Celso Vilardi — Nem sempre. As escutas na operação Cana Brava se basearam em informações da Receita Federal. Era uma operação quase que exclusivamente para investigar inadimplência fiscal, o que é completamente sem fundamento e descabido. Jamais poderia ter havido uma operação em um caso como esse. Já na Midas, o erro foi formal. O grampo pedido foi de 30 dias, estendidos por mais 30, o que o juiz autorizou. Mas a lei diz que o prazo máximo é de 15 dias, renováveis por outros 15. A Castelo de Areia, como já é público, caiu por conta da denúncia anônima. Na verdade, não aconteceu o que foi veiculado pela imprensa, de que acabou o disque-denúncia. Isso é uma bobagem. A tese é que o delegado não pode descrever que recebeu uma denúncia anônima, mas não juntá-la aos autos. Ele não diz como recebeu essa denúncia, se por telefone, por carta. Ela não consta dos autos. E com base nela é que quebraram o sigilo de dados de todos os assinantes. As operadoras de telefonia dão uma senha à Polícia Federal para acesso a todos os assinantes. A polícia diz que utilizou apenas para o investigado, mas o fato é que a senha dava acesso a todos. Em cima dessa denúncia anônima foi que se deflagrou a intercepção telefônica de dezenas de pessoas. O que defendemos não foi que a denúncia anônima não serve para investigar, como parte da mídia disse, mas que com base em uma denúncia anônima não se pode imediatamente partir para a quebra de um sigilo protegido constitucionalmente. É preciso fazer uma investigação para conferir a verossimilhança dessa denúncia anônima e, a partir daí, se for o caso, pedir a quebra de sigilo excepcional.

ConJur — Qual o perigo desse tipo de método? Celso Vilardi — Se com base só em uma denúncia anônima se pedir a quebra de sigilo, se eu não gosto de você, posso fazer uma denúncia anônima e o delegado vai quebrar seu sigilo telefônico e bancário. Isso não é razoável. Entendo que a população protesta contra a impunidade, mas esse não é o cerne da questão constitucional. O Estado tem é que fazer uma investigação dentro da lei. Se ele faz uma investigação dentro da lei e apura fatos, as pessoas devem ser efetivamente punidas. Não se pode chamar de meras formalidades as garantias que a Constituição consagrou desde 1988. Se banalizarmos isso, como muita gente defende ao sugerir a flexibilização de procedimentos para apurar o conteúdo principal, teremos um Estado verdadeiramente ditatorial. Abriremos as portas para que a polícia faça qualquer tipo de investigação contra qualquer pessoa com base em elementos pífios. Existe uma Polícia Federal, uma Polícia Civil, um Ministério Público Federal e um Ministério Público Estadual que têm como função investigar bem, dentro da legalidade.

ConJur — Uma investigação longa anulada por uma irregularidade não é frustrante levando-se em conta o gasto público com a persecução penal? Celso Vilardi — Claro que é. E isso acaba gerando impunidade. Mas existem vários erros para se chegar a esse ponto. Em primeiro lugar, a falta de legalidade nas investigações. Se ela fosse evitada, não se frustraria a população, porque não se chegaria a provas nulas. Além disso, há uma praxe na revelação desses dados em um momento inicial da apuração. Isso acaba chegando à sociedade no primeiro minuto de jogo, antes de se ter uma discussão sobre a licitude de tudo o que foi feito. O resultado é a criação de uma expectativa. Se as investigações não vazassem documentos sigilosos de forma ilegal, não haveria esse problema. Vazamentos acontecem em quase todas as operações. Só que quando o caso começa a ser julgado, pode ter uma prova ilícita, uma história que não é verdadeira, uma evidência que demonstre que aquela acusação era inteiramente falsa.

ConJur — O clamor das ruas por punições é legítimo? Celso Vilardi — Eu tinha um professor de Processo Penal, Ermínio Marcos Porto, que dizia que todo mundo tem uma tia que, quando vê o caso de um crime na televisão, diz: “esse cara tem que ir pra cadeia, só nesse país que não vai. Tem que ter condenação sumária. Para quê advogado?”. Mas quando seu filho atropela alguém na rua, ela vai ao escritório do advogado e quer prova pericial. “Cadê a prova de que o sinal estava vermelho e que ele estava em alta velocidade?” Quando você está envolvido em um processo penal, quer fazer valer os seus direitos constitucionais e os consagrados no Código de Processo Penal. Todo mundo precisa de direitos. Os direitos individuais são nossos, do advogado, do promotor, do juiz, do médico, de qualquer cidadão. A lógica de desprezar direitos individuais sob pretexto de que isso desagrada a população não é boa para ninguém, nem para as autoridades, nem para a população.

ConJur — A pressão aumenta quando o caso é vazado para a imprensa? Celso Vilardi — Via de regra, casos na imprensa são mais difíceis. Além do processo, é preciso enfrentar também as acusações feitas por meio dos jornais. Você tem que responder, ficar atento ao que acontece.

ConJur — A imprensa também adota o papel de “tia na frente da televisão”? Celso Vilardi — A imprensa é quase a tia. O que dá mais notícia: “fulano foi preso” ou “fulano foi solto”? No caso da operação Castelo de Areia, por exemplo, que tem repercussão nacional por vários motivos, a divulgação da anulação foi muito grande até pelo que ela significou. Mas na grande maioria das vezes, quando a operação é deflagrada, sai na manchete principal do jornal. Depois, quando o STJ julga a investigação ilegal, sai só uma notinha que ninguém lê. E os acusados ficam estigmatizados pelo resto da vida.

ConJur — Essa sede de punições afeta também o Judiciário? Celso Vilardi — O que aconteceu no Brasil foi que a Polícia Federal, antes do governo Lula, antes do ministro Márcio Thomaz Bastos, era extremamente desaparelhada, com condições ruins de trabalho. Mas nos últimos oito anos, principalmente nos primeiros quatro, ela foi reorganizada e reequipada. Conta hoje com pessoas muito mais capacitadas, já que os salários aumentaram e, por isso, a seleção ficou mais rígida. Além de mais instrumentos, há colaboração entre vários países por conta das leis de lavagem de dinheiro. A polícia começou a trabalhar muito mais. Só que isso provocou um encantamento por parte dos procuradores da República e dos magistrados, que olham e dizem: “mas que trabalho maravilhoso, veja o que a polícia fez”. Ninguém estava acostumado com isso no Brasil. Mas o juiz não pode ficar encantado, tem que ficar na posição de julgador, tem que dizer não.

ConJur — O encantamento pode contagiar o Ministério Público? Celso Vilardi — Pode. O MP é parte, pode acusar e depois pedir a condenação. Mas o juiz não pode entrar nesse clima, ele deve ficar alheio a tudo isso. Pode achar a investigação maravilhosa, mas tem que dizer “não” quando precisa fazê-lo. Só que na grande maioria das vezes, e não estou generalizando, o que sinto é que muitas vezes os juízes disseram “sim” de uma maneira muito fácil. E isso já gerou nulidades. È esse o motivo pelo qual tantas operações são anuladas nos tribunais, porque não passaram por um controle rígido. Eu, como advogado, não sou a causa da impunidade. Eu mostro ao tribunal a nulidade, mas quem errou não fui eu.

ConJur — Quais são os principais erros cometidos pelo Ministério Público e pela polícia? Celso Vilardi — Principalmente a banalização do grampo, um modo de investigação centrado e baseado quase que exclusivamente nas escutas. É exatamente o contrário do que determina a lei, que o grampo deve ser o último recurso da investigação.

ConJur — Em artigo intitulado A verdade sobre a Castelo de Areia, a procuradora Janice Ascari afirma que em várias ocasiões os tribunais superiores aceitaram a denúncia anônima como compatível com o Estado de Direito, e que não é verdade que a interceptação telefônica na operação tenha sido requerida e deferida apenas com base em uma denúncia anônima. Ela está certa? Celso Vilardi — Não, o STJ já disse que não está certo. Os tribunais já afirmaram diversas vezes que a denuncia anônima pode valer como fonte de investigação quando ela é seguida de alguma outra evidência. A questão é saber se há ou não uma investigação entre a denúncia anônima e a medida excepcional. No caso da Castelo de Areia não há, porque o STJ disse que não há. Se você pegar dez decisões do STJ sobre o assunto, vai encontrar uma proximidade muito grande, mas a matéria de fato é diversa. Foi feito um grande estouro midiático para esse assunto, mas a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do STJ está exatamente de acordo com essa decisão. Fiz vários memoriais para demonstrar que o STF e o STJ estavam absolutamente de acordo com a nossa tese. Além disso, essa não foi a única tese que levou à anulação da operação. Outra razão foi a decisão judicial declarada ilegal pelo STJ, porque foi genérica, não fundamentada, atingindo um número indeterminado de pessoas. Mas isso não interessa dizer, porque quando se coloca no jornal: “STJ anula por conta da denúncia anônima”, as pessoas perguntam: “mas e o disque-denúncia?” Mas essa foi apenas uma das cinco teses levantadas.

ConJur — Quais eram as outras? Celso Vilardi — A fundamentação das decisões das interceptações, ligada à quebra de sigilo de dados; a questão do prazo de 15 dias para a quebra de sigilo, que foi abordada pelo STJ; e a ilegalidade de se ter 12 meses de interceptações sucessivas, com várias prorrogações, o que é considerado ilegal.

ConJur — Na CPI da Pirataria, o doutor conseguiu derrubar uma investigação feita pelo chamado procedimento inominado. Qual a ilegalidade desta forma de ouvir o depoimento de uma testemunha? Celso Vilardi — Essa é uma criação moderna e absolutamente fora do Código de Processo Penal. O CPP contempla apenas o inquérito policial e a medida cautelar. Esse foi um grande problema dessas investigações, porque elas começaram com um procedimento inominado, e não se consegue localizar esse procedimento no sistema, nem se sabe quem são os envolvidos. Mas o Supremo já disse, por súmula, que o advogado tem direito de verificar as provas já produzidas pela investigação, que antes eram ocultadas por esses meios. Procedimento inominado é absolutamente ilegal. Confunde-se esse procedimento com uma medida cautelar. Muitas vezes, “procedimento inominado” é o nome utilizado para que não conste no sistema uma medida cautelar sigilosa de interceptação telefônica ou de busca e apreensão, por exemplo.

ConJur — O doutor defendeu diretores da Sadia das acusações que levaram à primeira condenação por insider trading no Brasil. Como foi trabalhar no processo? Celso Vilardi — Foi muito desafiador, por ser o primeiro caso de informação privilegiada. Tudo era novo no âmbito da Justiça Criminal. É difícil porque não há precedentes. A defesa se baseia apenas nos precedentes administrativos. O processo está indo agora para o Tribunal Regional Federal.

ConJur — Como é atuar em casos de crimes financeiros, como lavagem de dinheiro, em que a legislação é rasa e a coleta de provas é tão difícil? Celso Vilardi — Embora haja muito casos sobre lavagem de dinheiro, a Justiça ainda engatinha na questão. No Brasil, as investigações sobre o tema são absolutamente equivocadas. O crime precisa ser investigado de forma muito aprofundada, com rastreamento de dinheiro. Aqui, investiga-se o crime antecedente e, automaticamente, já se deduz a lavagem de dinheiro. As pessoas acham que o sujeito que pratica crime de corrupção e esconde o dinheiro está praticando lavagem, porque na Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro está escrito “ocultação”. Mas ocultação para lavagem não é esconder o dinheiro que se conseguiu no crime, e sim esconder com o objetivo de reinserir no sistema com aparência de licitude. Essa ocultação tem o objetivo de servir como forma intermediária entre a prática do crime e a dissimulação. O Brasil está investigando lavagem de dinheiro como se ela fosse uma consequência direta e obrigatória de crimes antecedentes.

ConJur — Como o doutor avalia o projeto de lei que torna todos os crimes do sistema possíveis de ser classificados como antecedentes? Celso Vilardi — É ruim. Na teoria, pode até ser razoável. Na prática, o Brasil fracassou no combate à lavagem de dinheiro. O fracasso da lei é oficial, e o STJ formou uma comissão para estudar as razões disso. Não se consegue apurar nem a lavagem de dinheiro dos poucos crimes antecedentes que estão no rol. Se aumentarmos isso, a tendência é que não se consiga punir ninguém.

ConJur — A tramitação direta do inquérito entre o Ministério Público e a polícia pode diminuir as burocracias das investigações? Celso Vilardi — Esse é um equivoco gigantesco. É ilegal, porque o Código de Processo não prevê. Causa inúmeros problemas. Tive um caso em que precisei fazer uma petição ao juiz, mas o inquérito não estava distribuído. Se o processo não ainda não chegou, o juiz não tem como decidir. O sistema diz que não é possível protocolar a petição, a não ser que seja uma medida cautelar, o que não era o caso. Aconteceu em Santa Catarina e também em São Paulo. Nós tivemos que fazer a petição ao delegado. Isso é absurdo, ridículo.

ConJur — Qual sua opinião sobre a criação do cargo de juiz de garantias, prevista no projeto do novo Código de Processo Penal? Celso Vilardi — É uma boa ideia em teoria, mas na prática, vejo muita dificuldade para ser implementada.

ConJur — O DIPO [Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária], em São Paulo, não é um exemplo que deu certo? Celso Vilardi — Sim, mas ele foi instalado em São Paulo, que tem um número razoável de juízes. É preciso pensar em como isso seria no interior, em uma comarca única, em outros estados, onde há dificuldades quanto a recursos humanos. Juiz de garantias implica um juiz para conhecer todas as questões relativas ao inquérito, as investigações, as medidas que são decretadas durante a investigação. Só depois é que um juiz diferente vai julgar a causa. Se já está faltando juiz para julgar a causa principal, como será com o de garantias?

ConJur — Qual sua opinião sobre a PEC dos Recursos, proposta pelo presidente do Supremo, ministro Cezar Peluso, para transportar o trânsito em julgado das decisões para a segunda instância? Celso Vilardi — Sou radicalmente contra. Até a justificativa apresentada é completamente descabida para a área penal, de que a maior parte dos recursos é procrastinatória. A grande maioria vem das empresas públicas em discussões cíveis. Se existe um problema na área cível que causa essa procrastinação, então que se resolva com medidas como multa por litigância de má-fé. O Supremo, reunido no Pleno, decidiu que o trânsito em julgado em matéria penal, analisado sob a luz do princípio da presunção de inocência, se dá no momento em que todos os recursos forem esgotados. Isso é uma decisão do Supremo: de que o princípio da presunção de inocência determina que, até o último julgamento, prevalece a presunção do estado de inocência. O problema não é o recurso, é o número de juízes. No STJ, temos duas turmas que julgam matéria penal, são dez ministros para um país do tamanho do nosso. O STJ foi feito para ter o dobro do número atual de ministros. Os gabinetes foram feitos levando-se em conta o dobro da quantidade. Nos Estados Unidos há cortes estaduais acima dos tribunais de apelação, que julgam até mesmo matérias constitucionais. Aqui no Brasil temos o STJ e o Supremo. O recurso já é especial ou extraordinário, o que indica que não são recursos naturais, mas dependem de cumprimentos de requisitos legais.

ConJur — O argumento é que os tribunais superiores servem como cortes de revisão. Celso Vilardi — É verdade, mas não na questão dos recursos especial e extraordinário. Quando se diz que o Brasil tem quatro instâncias é por causa do Habeas Corpus. Mas é impensável mexer no instituto. Pode-se impetrar pedidos de Habeas Corpus nos tribunais de Justiça, nos TRF, no STJ e no Supremo, realmente são três possibilidades de revisão. Mas isso está previsto na Constituição.

ConJur — Há membros do Judiciário que criticam o abuso na utilização do Habeas Corpus. Celso Vilardi — O Habeas Corpus serve fundamentalmente para garantir a liberdade de ir e vir. Mas no processo penal, o que está em jogo é justamente a liberdade de ir e vir, porque lida com pena privativa de liberdade. Na grande maioria dos casos, é possível pedir Habeas Corpus não só para soltar uma pessoa, o que serviria estritamente para garantir a liberdade de ir e vir, mas também para anular uma prova. Se uma pessoa for julgada com base em uma prova ilícita, terá seu direito de ir e vir restrito em função de uma nulidade. A jurisprudência do Supremo, do STJ, dos tribunais de Justiça e dos TRF é praticamente pacífica nesse sentido. Existe hoje um posicionamento do Supremo de que cabe Habeas Corpus para questionar inclusive quebra de sigilo bancário, cuja medida mais acertada seria o Mandado de Segurança.

ConJur — Com o aumento do número de pedidos de Habeas Corpus, os ministros do STJ não têm conseguido dar conta da quantidade de processos urgentes. Isso não prejudica os próprios impetrantes? Celso Vilardi — O número de pedidos de Habeas Corpus aumenta, e é uma verdade que muitas vezes ele é mal utilizado. Esse é um problema sistêmico, que se deve a escolas de Direito sofridas, que formam profissionais sem capacitação. No Exame de Ordem, que é rigoroso, o sujeito que é insistente passa, o que não garante a qualidade do profissional. Lembro-me de uma ocasião em que fui fazer uma sustentação oral no STJ, e assisti a um colega que falou antes de mim. Dizia ele aos ministros: “eu tenho certeza de que, nesse caso, não caberia Habeas Corpus, porque o tema implica análise de provas, mas a situação do meu cliente exige”. Ele mesmo reconheceu que a medida não cabia. Quando ele terminou, o ministro relator não teve opção: “estou negando, porque, como o próprio advogado disse, não cabe Habeas Corpus neste caso”.

ConJur — O trânsito em julgado na segunda instância abre a possibilidade de erros se tornarem irreversíveis? Celso Vilardi — Uma pesquisa feita pela Escola de Direito da FGV sobre crimes contra o sistema financeiro nacional mostra que de 18% a 20% dos pedidos de Habeas Corpus levados aos TRF em matéria criminal são concedidos, ou seja, um a cada cinco. Os concedidos pelo STJ são aproximadamente 25%, ou seja, de cada quatro que sobem, um é provido. O Supremo não entrou nessa pesquisa, mas se imaginarmos que o Supremo concede Habeas Corpus a uma proporção de 20% a 25%, chegaremos à conclusão da importância dos tribunais superiores para o sistema. Se o Superior Tribunal de Justiça concede Habeas Corpus em 25% dos casos, salva uma em cada quatro pessoas de sofrer um processo injusto. É disso que nós estamos falando. Eu apostaria que o Supremo tem um índice muito semelhante ao do STJ, ou seja, além dos processos já anulados no TRF e no STJ, o Supremo anula mais 20%.

ConJur — Há um conceito defendido por alguns magistrados de que o juiz criminal, acima da obrigação de ser imparcial, deve buscar a verdade, o que o autoriza a colher provas. Esse envolvimento com a investigação é sadio do ponto de vista constitucional? Celso Vilardi — No processo penal, o juiz pode ouvir uma testemunha, por exemplo, como testemunha do juízo, sem que nenhuma parte a tenha arrolado. Mas isso não significa que o juiz, no momento da investigação, possa passar por cima de questões constitucionais ou processuais para viabilizar uma investigação. Ele pode ouvir uma testemunha, pode produzir uma prova, pedir um esclarecimento para a perícia, para dirimir suas dúvidas no julgamento, mas isso não quer dizer que o juiz possa investigar. O Supremo já disse isso.

ConJur — Cabe ao juiz combater a corrupção? Celso Vilardi — Não cabe ao juiz tomar essa atitude. Ele tem que julgar. O juiz que julga de acordo com o Processo Penal, que obedece as regras, faz justiça colocando na cadeia o sujeito que tem que ir para cadeia. Não existe a figura do juiz apurador, investigador, que combate. Quem combate o crime é a polícia e o Ministério Público. O juiz não combate absolutamente nada. Os juízes que pretendem ser combatentes de crimes geram as maiores nulidades nos processos, porque adotam a postura de parte.

ConJur — Nos casos de grandes operações, uma decisão judicial pode definir o futuro de todos os réus. Como cada um tem seu defensor, os advogados costumam se reunir para combinar as estratégias? Celso Vilardi — Não. Sou amigo de muitos criminalistas, o que me leva a conversar com eles quando há dois ou três no caso. Mas isso não é rotina. Pode acontecer de se definir um caminho comum, mas nem sempre há consenso. Muitas vezes você diz que pretende entrar com um Habeas Corpus, o outro fala que não dá. Cada um tem sua maneira de analisar o caso, até porque o fato ligado ao seu cliente não é o mesmo atribuído a outro.

ConJur — O delator do caso do Mensalão do DEM, Durval Barbosa, tem parcelado as revelações, o que aumenta a midiatização. A que isso serve nas investigações? Celso Vilardi — A delação premiada precisa ser regulamentada. Hoje ela é praticamente uma manchete consagrada nas leis, mas não há uma regulamentação que diga como ela deve ser feita ou em que momento deve ser juntada aos autos. Que a delação premiada é um instrumento viável, eu não tenho dúvida. Ela pode ajudar na apuração de crimes, e ser usada por determinado acusado a seu favor, o que é legitimo. Se isso é moral ou não é outra questão, mas ele pode fazer isso. Embora faça parte do meio processual, a delação deve ter forma. O que não pode é ficar escondida, e a defesa ficar sabendo de sua existência no fim do processo. Deve ser objeto de contestação por parte da defesa do sujeito que foi delatado, que tem o direito de produzir provas a seu favor. Porque se o delator vai ter um beneficio, esse benefício tem que estar atrelado ao fato de ele ter dito a verdade. Eu já tive processo em que verifiquei a delação só na sentença. Ela nunca havia aparecido antes. ConJur — Revelações a conta-gotas, como essas do Mensalão do DEM, não servem mais a conveniências políticas que às investigações?

Celso Vilardi — Apesar de haver lei para punir esse tipo de revelação, porque isso é vazamento de dado sigiloso, esse é um problema que a experiência demonstra que ninguém consegue controlar. Em todas as operações houve revelações como essas, e em todas elas percebe-se que existe um certo método. Vai-se revelando na medida certa para se atingir determinado objetivo. Isso é muito ruim, porque é naquele fato que a acusação está se baseando, e que pode não ser verdade. Compromete-se a reputação de pessoas que, depois de absolvidas, não conseguem resgatar suas imagens.

ConJur — Além do político, o conceito de que o rico também é sempre culpado fica evidente? Celso Vilardi — Uma vez fui chamado para uma operação em um apartamento em Higienópolis. Fui comunicado às 6h da manhã, e devo ter chegado umas 7h ao local. A Polícia Federal estava na porta, aquela bagunça. Entrei no prédio, cumprimentei o pessoal, disse que era advogado do investigado. Daí um garoto abriu a porta do prédio para mim e chamou o elevador. Eu entrei, apertei o botão do andar e vi que ele não apertou nenhum. Então ele disse: “o senhor é advogado?” Eu respondi que sim. Ele continuou: “esse cara tem muitos carros. Eu sempre achei que tinha alguma coisa errada com ele”. Ou seja, o menino de 13 ou 14 anos já nem estava querendo saber por que a pessoa estava sendo acusada. Para ele, era óbvio que o sujeito era culpado porque, para ter tantos carros, tinha que fazer sacanagem. Essa é a visão da sociedade.

ConJur — Quanto o fato de ser rico ajuda a ter uma boa defesa? Celso Vilardi — Os precedentes do STJ a respeito de interceptação telefônica, por exemplo, envolvem um monte de desconhecidos, gente pobre. Eu fui ver os precedentes. Tem um referente ao caso de um pequeno traficante, outro que tratou de um sujeito que vendia drogas em uma barraquinha de cachorro-quente. Só que quando um processo com repercussão na mídia termina com a absolvição, todo mundo atribui a decisão ao fato de o acusado ter dinheiro. A história do grampo não é de decisões apenas para ricos, mas também para pobres. É claro que todas elas envolvem um advogado bom, que suscitou a tese. É mais fácil você se salvar em uma operação do coração com um médico melhor. É mais fácil se ter sucesso em um implante dentário com um dentista bom. É mais fácil você descobrir um problema no cérebro se quem faz e analisa a tomografia é bom. Tem gente que morre na fila do SUS, mas é difícil isso acontecer no [Hospital Albert] Einstein. A Justiça não é diferente da área da saúde. Morre gente na fila do SUS, e tem gente inocente presa. A defesa é cara. É preciso ir a Brasília para sustentar um pedido de Habeas Corpus, distribuir memoriais, tirar cópias de pareceres. Obviamente, tem muita gente que não chega ao Supremo porque não tem condição de chegar. Porém, com o Habeas Corpus eletrônico, que ainda não está funcionando completamente, vai haver uma democratização.

ConJur — De onde veio o interesse pelo Direito Criminal? Celso Vilardi — Antes de eu entrar para o curso, ouvi na Rádio Jovem Pan o criminalista Evandro Lins e Silva fazendo o Júri do caso Doca Street [condenado pelo assassinato da namorada Ângela Diniz, em 1981]. Eu coloquei na cabeça que, quando crescesse, queria ser igual ao Evandro Lins. Havia um charme maior no Júri porque não havia essas chacinas, essa banalização da vida. Eram casos de violenta emoção, traição etc. É muito mais difícil fazer Júri hoje, porque os jurados estão vendo violência gratuita todos os dias.

ConJur — Como foi o início na advocacia? Celso Vilardi — Comecei a advogar com 23 anos de idade, sozinho. Até cheguei a ter uma sociedade, mas na área penal quem atuava era só eu. Então saí dessa sociedade e montei a minha própria. Contratei um advogado, um estagiário, depois dois advogados. Sempre fui o mais velho, hoje estou com 43 anos. Então, a responsabilidade de tomar decisões era sempre minha. Não se pode imaginar o que é isso no Direito Penal. Só sabe o que é isso o médico oncologista, porque a advocacia criminal é prima de primeiro grau da oncologia. Em uma se lida com a liberdade das pessoas, e na outra, com a vida. As ansiedades são as mesmas. O cliente do criminalista pergunta: “eu vou ser preso?”, e o do oncologista quer saber se vai morrer. Às vezes o médico diz: “sim, você vai morrer”, assim como às vezes também tenho de dizer: “sim, você vai ser preso. Vamos fazer a melhor defesa possível, mas há grande probabilidade de você ir para a cadeia”.

ConJur — Sempre trabalhou na área penal? Celso Vilardi — Sempre fiz estágio na área penal. A primeira experiência foi advogando no tribunal do Júri. Eu não tinha o que fazer, não tinha clientes, então eu fazia Júri para o Estado, de cinco a sete por mês. Passei assim durante dois ou três anos. Duas colegas de turma na faculdade trabalhavam no escritório Mattos Filho, e começaram a indicar meu nome para atender clientes da banca, que é essencialmente empresarial. Foi quando fiz contato com o público para o qual eles me indicavam. Então fui me afastando do Júri, para atender clientes da área empresarial. Hoje estou muito afastado do Júri. Até tenho alguns casos, mas são poucos. Tenho até mais casos em que atuo como assistente da acusação do que como defensor. ConJur — Qual foi o primeiro grande caso? Celso Vilardi — O primeiro que ganhei foi o do Banco Pontual, no STJ também. Daí a carreira foi crescendo. Tenho 20 anos de formado. Em 2007 apareceu um presente de Deus na minha vida, que foi o Márcio Thomaz Bastos. Foi o [também criminalista] Arnaldo Malheiros quem me aproximou do Márcio. E ele passou a me indicar para alguns casos, fora aqueles em que nós trabalhamos juntos. Foi importante em todos os aspectos, não só por trabalhar em causas grandes. Na maioria delas, foi ele quem me indicou.

ConJur — Como é dizer ao cliente que ele vai ser preso? Celso Vilardi — Você tem que dizer. Perco muitos clientes porque falo a verdade. Dizia meu pai que é melhor passar dois minutos de cara amarela, do que ficar duas semanas de cara vermelha. O cliente deve entender que pode conseguir uma pena menor, e esse é um dos motivos de se ter um bom advogado. É ter a pena justa. Não existe mágica na advocacia criminal. Existe um processo, existe um código, uma prova, análise e leitura de documento por documento, e uma solução que depende da prova. Às vezes, uma testemunha diz: “eu menti doutor, falei que era ele, mas não era”. E o caso que estava perdido não está mais. Pode surgir um elemento novo no processo ou, num caso difícil, se descobrir uma nulidade.

ConJur — Prestígio é proporcional a dinheiro? Celso Vilardi — Prestígio vem de seriedade. Você pode até não ser um advogado conhecido, mas se faz um trabalho sério, uma sustentação correta, o juiz reconhece, o procurador reconhece, o tribunal reconhece. Uma pessoa que escreve mal, com erros de português, que tem uma interpretação absurda do texto legal, que inverte fatos, que oculta, que muda, fica marcada. E é claro que quanto mais prestigiado você for, haverá uma clientela maior, e uma recompensa maior em dinheiro, como em qualquer profissão.

ConJur – O que significa para o advogado ganhar ou perder? Celso Vilardi — Vou contar uma história. Advogado novo, fui defender um cara acusado de estuprar e assassinar uma garota. Ele estava preso, mas não havia provas conta ele. No dia do julgamento, quando fui conversar, ele disse: “doutor, é o seguinte: eu sou o bandido do bairro, assumo o que faço. Sou estuprador e sou ladrão. O senhor viu minha folha? De todos os casos que estão lá, eu sou culpado. Mas este aqui não fui eu. Sabe como é: eu sou o bandido do bairro, colocaram nas minhas costas. Uma sacanagem.” Eu pensei: “esse cara é sincero”. Não tinha prova contra ele. Fiz a defesa, gritei, chorei. Mas o resultado do Júri foi 7×0. Ele foi condenado. Não havia provas, mas ele estava sendo condenado pelo seu passado: estuprador, ladrão, homicida. Disse a ele: “fulano, você foi condenado: 7×0. Você viu que eu fiz o melhor que podia, mas seu histórico prejudicou”. Voltei para o plenário com uma cara de derrota, triste. Foi uma tremenda injustiça com o meu cliente, ele iria ficar preso por algo que não fez. Ele percebeu a minha tristeza e, antes de ir embora, deu um tapinha nas minhas costas. “Doutor, fica frio. Fui eu mesmo que matei a menina.” E foi embora. Eu não dormi aquela noite. Fiquei pensando: “e se eu absolvo esse cara? Ele disse que não tinha matado a menina”. No dia seguinte, encontrei o promotor, que eu conhecia do tempo em que fiz estágio no MP, e fomos bater um papo. Eu contei o que aconteceu. “Estou arrasado”, disse. Ele respondeu: “você é burro, rapaz. Você não é juiz. Imagine se você poderia absolver alguém? Quem absolve é o jurado. Advogado é para defender. Você fez uma boa defesa, tem que continuar seu trabalho”. Isso me ajudou muito. Porque eu tinha ficado com aquele pensamento: “E se eu o absolvo?” Advogado não absolve ninguém. Advogado defende.

Alessandro Cristo é editor da revista Consultor Jurídico Revista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2011.

Publicações

Todas as vezes que a imprensa alardeia o início de uma megaoperação da Polícia Federal, o enredo é o mesmo: centenas de agentes munidos de ordens judiciais fazem o arrastão de prisões e apreensões, diante de câmeras e repórteres eufóricos. Em casa, o cidadão revê à exaustão imagens dos detidos de terno e gravata desembarcando nas delegacias. A satisfação é geral.

O que não ganha manchetes com o mesmo rufar de bumbos são os resultados desse teatro. Investigações mal conduzidas e repletas de falhas encruam condenações e geram ainda mais impunidade. Exterminá-las se tornou a especialidade do criminalista e professor de Direito da FGV em São Paulo, Celso Sanchez Vilardi.

Pelo menos quatro megaoperações da Polícia Federal ruíram ao bater de frente com o advogado. A Operação Castelo de Areia, mais recente e também a mais polêmica dos últimos anos, é o melhor exemplo. Devido a uma sucessão de falhas da polícia, do Ministério Público e do Judiciário, gravíssimas acusações de crimes financeiros e desvio de verbas públicas contra executivos da empreiteira Camargo Corrêa caíram. Em abril, o Superior Tribunal de Justiça anulou grampos autorizados com base em denúncia anônima não juntada aos autos pela polícia. E o castelo desmoronou.

O mesmo destino tiveram a Operação Midas, que apurou fraudes no INSS, corrupção e lavagem de dinheiro; a Operação Cana Brava, sobre apropriação indébita milionária envolvendo usinas de açúcar em Araçatuba (SP); e a Operação Kaspar II, que investigou lavagem de dinheiro e evasão de divisas envolvendo empreiteiras e bancos suíços como UBS, Credit Suisse, Clariden e AIG.

Vilardi integra a linha de frente da nova geração de criminalistas brasileiros — um grupo de jovens em torno dos 40 anos de idade, mas que já encaram alguns dos mais importantes casos do país. Não por acaso, ele é um dos parceiros preferenciais do advogado e ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos nos contenciosos mais clamorosos da República.

O currículo de Vilardi é extenso. Veja abaixo a lista dos clientes mais notáveis:

Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT e um dos réus no processo que apura o esquema do Mensalão;

Eike Batista, dono da MMX investigado por irregularidades na licitação para a construção da estrada de ferro do Amapá, na Operação Toque de Midas;

Luiz Murat Filho, primeiro condenado pela prática de insider trading, o uso informações privilegiadas para atuar no mercado de capitais;

Robson Marinho, ex-deputado e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, investigado por beneficiar a companhia francesa Alston, vencedora de licitação para o fornecimento de trens ao metrô do estado;

Rafael Palladino, ex-diretor do banco Panamericano apontado como um dos responsáveis por irregularidades financeiras que levaram ao rombo na instituição.

Maria Glória Bairão dos Santos, mulher do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, investigada sobre um esquema de proteção ao ex-juiz condenado por corrupção, peculato e estelionato;

Celso Pitta, ex-prefeito de São Paulo investigado pela CPI do Banestado e morto em 2009.

Participaram da entrevista os jornalistas Lilian Matsuura, Mariana Ghirello e Maurício Cardoso.

Leia a entrevista:
ConJur — O doutor ficou famoso por conseguir derrubar pelo menos quatro grandes operações da Polícia Federal contra seus clientes. Como foi trabalhar nos casos? Celso Vilardi — Temos um resultado importante com relação a essas operações. A Operação Castelo de Areia foi a última delas. Antes, anulamos uma operação chamada Midas, que não é a Toque de Midas, que também envolve clientes meus. Esta não foi julgada ainda, mas também vou anular.

ConJur — Do que tratava a operação Midas? Celso Vilardi — Foi deflagrada em Mato Grosso para investigar fraudes contra a Previdência, envolvendo diversos empresários e fiscais do INSS. Teve início a partir de um grampo contra um fiscal.

ConJur — Em todas as operações que o doutor conseguiu anular, o grampo foi o calcanhar de Aquiles? Celso Vilardi — Assim como a Castelo de Areia, a Midas foi anulada por causa do grampo. A Operação Cana Brava, envolvendo usineiros em Araçatuba, também caiu devido ao uso de grampo. Em um contexto diferente dessas três, a operação Kaspar II [que investigou lavagem de dinheiro e evasão de divisas envolvendo bancos como UBS, Credit Suisse, Clariden e AIG e empreiteiras] não foi anulada. O que nós conseguimos foi derrubar a denúncia contra nosso cliente porque ela não cumpria os requisitos legais, o que foi acolhido no Superior Tribunal de Justiça. Nas outras três, anulando-se o grampo, esvaziou-se praticamente a operação toda. Isso gera efeitos não só para o meu cliente, mas para terceiros também.

ConJur — Em que a denúncia do MP no caso da Kaspar II era vulnerável? Celso Vilardi — Eu defendia um representante de um banco, acusado de inúmeros crimes. O caso que sustentava isso era um fato medíocre, havia dois diálogos gravados em que ele estava falando uma coisa sem qualquer significado, mas o denunciante dizia que, com base nesse dialogo, ele praticava lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Nossa defesa foi de que a acusação não estava descrita suficientemente para propiciar um contraditório. Então o STJ anulou a denúncia.

ConJur — Ao contrário do que prevê a legislação, o grampo tem sido a primeira e principal evidência nas investigações? Celso Vilardi — Nem sempre. As escutas na operação Cana Brava se basearam em informações da Receita Federal. Era uma operação quase que exclusivamente para investigar inadimplência fiscal, o que é completamente sem fundamento e descabido. Jamais poderia ter havido uma operação em um caso como esse. Já na Midas, o erro foi formal. O grampo pedido foi de 30 dias, estendidos por mais 30, o que o juiz autorizou. Mas a lei diz que o prazo máximo é de 15 dias, renováveis por outros 15. A Castelo de Areia, como já é público, caiu por conta da denúncia anônima. Na verdade, não aconteceu o que foi veiculado pela imprensa, de que acabou o disque-denúncia. Isso é uma bobagem. A tese é que o delegado não pode descrever que recebeu uma denúncia anônima, mas não juntá-la aos autos. Ele não diz como recebeu essa denúncia, se por telefone, por carta. Ela não consta dos autos. E com base nela é que quebraram o sigilo de dados de todos os assinantes. As operadoras de telefonia dão uma senha à Polícia Federal para acesso a todos os assinantes. A polícia diz que utilizou apenas para o investigado, mas o fato é que a senha dava acesso a todos. Em cima dessa denúncia anônima foi que se deflagrou a intercepção telefônica de dezenas de pessoas. O que defendemos não foi que a denúncia anônima não serve para investigar, como parte da mídia disse, mas que com base em uma denúncia anônima não se pode imediatamente partir para a quebra de um sigilo protegido constitucionalmente. É preciso fazer uma investigação para conferir a verossimilhança dessa denúncia anônima e, a partir daí, se for o caso, pedir a quebra de sigilo excepcional.

ConJur — Qual o perigo desse tipo de método? Celso Vilardi — Se com base só em uma denúncia anônima se pedir a quebra de sigilo, se eu não gosto de você, posso fazer uma denúncia anônima e o delegado vai quebrar seu sigilo telefônico e bancário. Isso não é razoável. Entendo que a população protesta contra a impunidade, mas esse não é o cerne da questão constitucional. O Estado tem é que fazer uma investigação dentro da lei. Se ele faz uma investigação dentro da lei e apura fatos, as pessoas devem ser efetivamente punidas. Não se pode chamar de meras formalidades as garantias que a Constituição consagrou desde 1988. Se banalizarmos isso, como muita gente defende ao sugerir a flexibilização de procedimentos para apurar o conteúdo principal, teremos um Estado verdadeiramente ditatorial. Abriremos as portas para que a polícia faça qualquer tipo de investigação contra qualquer pessoa com base em elementos pífios. Existe uma Polícia Federal, uma Polícia Civil, um Ministério Público Federal e um Ministério Público Estadual que têm como função investigar bem, dentro da legalidade.

ConJur — Uma investigação longa anulada por uma irregularidade não é frustrante levando-se em conta o gasto público com a persecução penal? Celso Vilardi — Claro que é. E isso acaba gerando impunidade. Mas existem vários erros para se chegar a esse ponto. Em primeiro lugar, a falta de legalidade nas investigações. Se ela fosse evitada, não se frustraria a população, porque não se chegaria a provas nulas. Além disso, há uma praxe na revelação desses dados em um momento inicial da apuração. Isso acaba chegando à sociedade no primeiro minuto de jogo, antes de se ter uma discussão sobre a licitude de tudo o que foi feito. O resultado é a criação de uma expectativa. Se as investigações não vazassem documentos sigilosos de forma ilegal, não haveria esse problema. Vazamentos acontecem em quase todas as operações. Só que quando o caso começa a ser julgado, pode ter uma prova ilícita, uma história que não é verdadeira, uma evidência que demonstre que aquela acusação era inteiramente falsa.

ConJur — O clamor das ruas por punições é legítimo? Celso Vilardi — Eu tinha um professor de Processo Penal, Ermínio Marcos Porto, que dizia que todo mundo tem uma tia que, quando vê o caso de um crime na televisão, diz: “esse cara tem que ir pra cadeia, só nesse país que não vai. Tem que ter condenação sumária. Para quê advogado?”. Mas quando seu filho atropela alguém na rua, ela vai ao escritório do advogado e quer prova pericial. “Cadê a prova de que o sinal estava vermelho e que ele estava em alta velocidade?” Quando você está envolvido em um processo penal, quer fazer valer os seus direitos constitucionais e os consagrados no Código de Processo Penal. Todo mundo precisa de direitos. Os direitos individuais são nossos, do advogado, do promotor, do juiz, do médico, de qualquer cidadão. A lógica de desprezar direitos individuais sob pretexto de que isso desagrada a população não é boa para ninguém, nem para as autoridades, nem para a população.

ConJur — A pressão aumenta quando o caso é vazado para a imprensa? Celso Vilardi — Via de regra, casos na imprensa são mais difíceis. Além do processo, é preciso enfrentar também as acusações feitas por meio dos jornais. Você tem que responder, ficar atento ao que acontece.

ConJur — A imprensa também adota o papel de “tia na frente da televisão”? Celso Vilardi — A imprensa é quase a tia. O que dá mais notícia: “fulano foi preso” ou “fulano foi solto”? No caso da operação Castelo de Areia, por exemplo, que tem repercussão nacional por vários motivos, a divulgação da anulação foi muito grande até pelo que ela significou. Mas na grande maioria das vezes, quando a operação é deflagrada, sai na manchete principal do jornal. Depois, quando o STJ julga a investigação ilegal, sai só uma notinha que ninguém lê. E os acusados ficam estigmatizados pelo resto da vida.

ConJur — Essa sede de punições afeta também o Judiciário? Celso Vilardi — O que aconteceu no Brasil foi que a Polícia Federal, antes do governo Lula, antes do ministro Márcio Thomaz Bastos, era extremamente desaparelhada, com condições ruins de trabalho. Mas nos últimos oito anos, principalmente nos primeiros quatro, ela foi reorganizada e reequipada. Conta hoje com pessoas muito mais capacitadas, já que os salários aumentaram e, por isso, a seleção ficou mais rígida. Além de mais instrumentos, há colaboração entre vários países por conta das leis de lavagem de dinheiro. A polícia começou a trabalhar muito mais. Só que isso provocou um encantamento por parte dos procuradores da República e dos magistrados, que olham e dizem: “mas que trabalho maravilhoso, veja o que a polícia fez”. Ninguém estava acostumado com isso no Brasil. Mas o juiz não pode ficar encantado, tem que ficar na posição de julgador, tem que dizer não.

ConJur — O encantamento pode contagiar o Ministério Público? Celso Vilardi — Pode. O MP é parte, pode acusar e depois pedir a condenação. Mas o juiz não pode entrar nesse clima, ele deve ficar alheio a tudo isso. Pode achar a investigação maravilhosa, mas tem que dizer “não” quando precisa fazê-lo. Só que na grande maioria das vezes, e não estou generalizando, o que sinto é que muitas vezes os juízes disseram “sim” de uma maneira muito fácil. E isso já gerou nulidades. È esse o motivo pelo qual tantas operações são anuladas nos tribunais, porque não passaram por um controle rígido. Eu, como advogado, não sou a causa da impunidade. Eu mostro ao tribunal a nulidade, mas quem errou não fui eu.

ConJur — Quais são os principais erros cometidos pelo Ministério Público e pela polícia? Celso Vilardi — Principalmente a banalização do grampo, um modo de investigação centrado e baseado quase que exclusivamente nas escutas. É exatamente o contrário do que determina a lei, que o grampo deve ser o último recurso da investigação.

ConJur — Em artigo intitulado A verdade sobre a Castelo de Areia, a procuradora Janice Ascari afirma que em várias ocasiões os tribunais superiores aceitaram a denúncia anônima como compatível com o Estado de Direito, e que não é verdade que a interceptação telefônica na operação tenha sido requerida e deferida apenas com base em uma denúncia anônima. Ela está certa? Celso Vilardi — Não, o STJ já disse que não está certo. Os tribunais já afirmaram diversas vezes que a denuncia anônima pode valer como fonte de investigação quando ela é seguida de alguma outra evidência. A questão é saber se há ou não uma investigação entre a denúncia anônima e a medida excepcional. No caso da Castelo de Areia não há, porque o STJ disse que não há. Se você pegar dez decisões do STJ sobre o assunto, vai encontrar uma proximidade muito grande, mas a matéria de fato é diversa. Foi feito um grande estouro midiático para esse assunto, mas a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do STJ está exatamente de acordo com essa decisão. Fiz vários memoriais para demonstrar que o STF e o STJ estavam absolutamente de acordo com a nossa tese. Além disso, essa não foi a única tese que levou à anulação da operação. Outra razão foi a decisão judicial declarada ilegal pelo STJ, porque foi genérica, não fundamentada, atingindo um número indeterminado de pessoas. Mas isso não interessa dizer, porque quando se coloca no jornal: “STJ anula por conta da denúncia anônima”, as pessoas perguntam: “mas e o disque-denúncia?” Mas essa foi apenas uma das cinco teses levantadas.

ConJur — Quais eram as outras? Celso Vilardi — A fundamentação das decisões das interceptações, ligada à quebra de sigilo de dados; a questão do prazo de 15 dias para a quebra de sigilo, que foi abordada pelo STJ; e a ilegalidade de se ter 12 meses de interceptações sucessivas, com várias prorrogações, o que é considerado ilegal.

ConJur — Na CPI da Pirataria, o doutor conseguiu derrubar uma investigação feita pelo chamado procedimento inominado. Qual a ilegalidade desta forma de ouvir o depoimento de uma testemunha? Celso Vilardi — Essa é uma criação moderna e absolutamente fora do Código de Processo Penal. O CPP contempla apenas o inquérito policial e a medida cautelar. Esse foi um grande problema dessas investigações, porque elas começaram com um procedimento inominado, e não se consegue localizar esse procedimento no sistema, nem se sabe quem são os envolvidos. Mas o Supremo já disse, por súmula, que o advogado tem direito de verificar as provas já produzidas pela investigação, que antes eram ocultadas por esses meios. Procedimento inominado é absolutamente ilegal. Confunde-se esse procedimento com uma medida cautelar. Muitas vezes, “procedimento inominado” é o nome utilizado para que não conste no sistema uma medida cautelar sigilosa de interceptação telefônica ou de busca e apreensão, por exemplo.

ConJur — O doutor defendeu diretores da Sadia das acusações que levaram à primeira condenação por insider trading no Brasil. Como foi trabalhar no processo? Celso Vilardi — Foi muito desafiador, por ser o primeiro caso de informação privilegiada. Tudo era novo no âmbito da Justiça Criminal. É difícil porque não há precedentes. A defesa se baseia apenas nos precedentes administrativos. O processo está indo agora para o Tribunal Regional Federal.

ConJur — Como é atuar em casos de crimes financeiros, como lavagem de dinheiro, em que a legislação é rasa e a coleta de provas é tão difícil? Celso Vilardi — Embora haja muito casos sobre lavagem de dinheiro, a Justiça ainda engatinha na questão. No Brasil, as investigações sobre o tema são absolutamente equivocadas. O crime precisa ser investigado de forma muito aprofundada, com rastreamento de dinheiro. Aqui, investiga-se o crime antecedente e, automaticamente, já se deduz a lavagem de dinheiro. As pessoas acham que o sujeito que pratica crime de corrupção e esconde o dinheiro está praticando lavagem, porque na Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro está escrito “ocultação”. Mas ocultação para lavagem não é esconder o dinheiro que se conseguiu no crime, e sim esconder com o objetivo de reinserir no sistema com aparência de licitude. Essa ocultação tem o objetivo de servir como forma intermediária entre a prática do crime e a dissimulação. O Brasil está investigando lavagem de dinheiro como se ela fosse uma consequência direta e obrigatória de crimes antecedentes.

ConJur — Como o doutor avalia o projeto de lei que torna todos os crimes do sistema possíveis de ser classificados como antecedentes? Celso Vilardi — É ruim. Na teoria, pode até ser razoável. Na prática, o Brasil fracassou no combate à lavagem de dinheiro. O fracasso da lei é oficial, e o STJ formou uma comissão para estudar as razões disso. Não se consegue apurar nem a lavagem de dinheiro dos poucos crimes antecedentes que estão no rol. Se aumentarmos isso, a tendência é que não se consiga punir ninguém.

ConJur — A tramitação direta do inquérito entre o Ministério Público e a polícia pode diminuir as burocracias das investigações? Celso Vilardi — Esse é um equivoco gigantesco. É ilegal, porque o Código de Processo não prevê. Causa inúmeros problemas. Tive um caso em que precisei fazer uma petição ao juiz, mas o inquérito não estava distribuído. Se o processo não ainda não chegou, o juiz não tem como decidir. O sistema diz que não é possível protocolar a petição, a não ser que seja uma medida cautelar, o que não era o caso. Aconteceu em Santa Catarina e também em São Paulo. Nós tivemos que fazer a petição ao delegado. Isso é absurdo, ridículo.

ConJur — Qual sua opinião sobre a criação do cargo de juiz de garantias, prevista no projeto do novo Código de Processo Penal? Celso Vilardi — É uma boa ideia em teoria, mas na prática, vejo muita dificuldade para ser implementada.

ConJur — O DIPO [Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária], em São Paulo, não é um exemplo que deu certo? Celso Vilardi — Sim, mas ele foi instalado em São Paulo, que tem um número razoável de juízes. É preciso pensar em como isso seria no interior, em uma comarca única, em outros estados, onde há dificuldades quanto a recursos humanos. Juiz de garantias implica um juiz para conhecer todas as questões relativas ao inquérito, as investigações, as medidas que são decretadas durante a investigação. Só depois é que um juiz diferente vai julgar a causa. Se já está faltando juiz para julgar a causa principal, como será com o de garantias?

ConJur — Qual sua opinião sobre a PEC dos Recursos, proposta pelo presidente do Supremo, ministro Cezar Peluso, para transportar o trânsito em julgado das decisões para a segunda instância? Celso Vilardi — Sou radicalmente contra. Até a justificativa apresentada é completamente descabida para a área penal, de que a maior parte dos recursos é procrastinatória. A grande maioria vem das empresas públicas em discussões cíveis. Se existe um problema na área cível que causa essa procrastinação, então que se resolva com medidas como multa por litigância de má-fé. O Supremo, reunido no Pleno, decidiu que o trânsito em julgado em matéria penal, analisado sob a luz do princípio da presunção de inocência, se dá no momento em que todos os recursos forem esgotados. Isso é uma decisão do Supremo: de que o princípio da presunção de inocência determina que, até o último julgamento, prevalece a presunção do estado de inocência. O problema não é o recurso, é o número de juízes. No STJ, temos duas turmas que julgam matéria penal, são dez ministros para um país do tamanho do nosso. O STJ foi feito para ter o dobro do número atual de ministros. Os gabinetes foram feitos levando-se em conta o dobro da quantidade. Nos Estados Unidos há cortes estaduais acima dos tribunais de apelação, que julgam até mesmo matérias constitucionais. Aqui no Brasil temos o STJ e o Supremo. O recurso já é especial ou extraordinário, o que indica que não são recursos naturais, mas dependem de cumprimentos de requisitos legais.

ConJur — O argumento é que os tribunais superiores servem como cortes de revisão. Celso Vilardi — É verdade, mas não na questão dos recursos especial e extraordinário. Quando se diz que o Brasil tem quatro instâncias é por causa do Habeas Corpus. Mas é impensável mexer no instituto. Pode-se impetrar pedidos de Habeas Corpus nos tribunais de Justiça, nos TRF, no STJ e no Supremo, realmente são três possibilidades de revisão. Mas isso está previsto na Constituição.

ConJur — Há membros do Judiciário que criticam o abuso na utilização do Habeas Corpus. Celso Vilardi — O Habeas Corpus serve fundamentalmente para garantir a liberdade de ir e vir. Mas no processo penal, o que está em jogo é justamente a liberdade de ir e vir, porque lida com pena privativa de liberdade. Na grande maioria dos casos, é possível pedir Habeas Corpus não só para soltar uma pessoa, o que serviria estritamente para garantir a liberdade de ir e vir, mas também para anular uma prova. Se uma pessoa for julgada com base em uma prova ilícita, terá seu direito de ir e vir restrito em função de uma nulidade. A jurisprudência do Supremo, do STJ, dos tribunais de Justiça e dos TRF é praticamente pacífica nesse sentido. Existe hoje um posicionamento do Supremo de que cabe Habeas Corpus para questionar inclusive quebra de sigilo bancário, cuja medida mais acertada seria o Mandado de Segurança.

ConJur — Com o aumento do número de pedidos de Habeas Corpus, os ministros do STJ não têm conseguido dar conta da quantidade de processos urgentes. Isso não prejudica os próprios impetrantes? Celso Vilardi — O número de pedidos de Habeas Corpus aumenta, e é uma verdade que muitas vezes ele é mal utilizado. Esse é um problema sistêmico, que se deve a escolas de Direito sofridas, que formam profissionais sem capacitação. No Exame de Ordem, que é rigoroso, o sujeito que é insistente passa, o que não garante a qualidade do profissional. Lembro-me de uma ocasião em que fui fazer uma sustentação oral no STJ, e assisti a um colega que falou antes de mim. Dizia ele aos ministros: “eu tenho certeza de que, nesse caso, não caberia Habeas Corpus, porque o tema implica análise de provas, mas a situação do meu cliente exige”. Ele mesmo reconheceu que a medida não cabia. Quando ele terminou, o ministro relator não teve opção: “estou negando, porque, como o próprio advogado disse, não cabe Habeas Corpus neste caso”.

ConJur — O trânsito em julgado na segunda instância abre a possibilidade de erros se tornarem irreversíveis? Celso Vilardi — Uma pesquisa feita pela Escola de Direito da FGV sobre crimes contra o sistema financeiro nacional mostra que de 18% a 20% dos pedidos de Habeas Corpus levados aos TRF em matéria criminal são concedidos, ou seja, um a cada cinco. Os concedidos pelo STJ são aproximadamente 25%, ou seja, de cada quatro que sobem, um é provido. O Supremo não entrou nessa pesquisa, mas se imaginarmos que o Supremo concede Habeas Corpus a uma proporção de 20% a 25%, chegaremos à conclusão da importância dos tribunais superiores para o sistema. Se o Superior Tribunal de Justiça concede Habeas Corpus em 25% dos casos, salva uma em cada quatro pessoas de sofrer um processo injusto. É disso que nós estamos falando. Eu apostaria que o Supremo tem um índice muito semelhante ao do STJ, ou seja, além dos processos já anulados no TRF e no STJ, o Supremo anula mais 20%.

ConJur — Há um conceito defendido por alguns magistrados de que o juiz criminal, acima da obrigação de ser imparcial, deve buscar a verdade, o que o autoriza a colher provas. Esse envolvimento com a investigação é sadio do ponto de vista constitucional? Celso Vilardi — No processo penal, o juiz pode ouvir uma testemunha, por exemplo, como testemunha do juízo, sem que nenhuma parte a tenha arrolado. Mas isso não significa que o juiz, no momento da investigação, possa passar por cima de questões constitucionais ou processuais para viabilizar uma investigação. Ele pode ouvir uma testemunha, pode produzir uma prova, pedir um esclarecimento para a perícia, para dirimir suas dúvidas no julgamento, mas isso não quer dizer que o juiz possa investigar. O Supremo já disse isso.

ConJur — Cabe ao juiz combater a corrupção? Celso Vilardi — Não cabe ao juiz tomar essa atitude. Ele tem que julgar. O juiz que julga de acordo com o Processo Penal, que obedece as regras, faz justiça colocando na cadeia o sujeito que tem que ir para cadeia. Não existe a figura do juiz apurador, investigador, que combate. Quem combate o crime é a polícia e o Ministério Público. O juiz não combate absolutamente nada. Os juízes que pretendem ser combatentes de crimes geram as maiores nulidades nos processos, porque adotam a postura de parte.

ConJur — Nos casos de grandes operações, uma decisão judicial pode definir o futuro de todos os réus. Como cada um tem seu defensor, os advogados costumam se reunir para combinar as estratégias? Celso Vilardi — Não. Sou amigo de muitos criminalistas, o que me leva a conversar com eles quando há dois ou três no caso. Mas isso não é rotina. Pode acontecer de se definir um caminho comum, mas nem sempre há consenso. Muitas vezes você diz que pretende entrar com um Habeas Corpus, o outro fala que não dá. Cada um tem sua maneira de analisar o caso, até porque o fato ligado ao seu cliente não é o mesmo atribuído a outro.

ConJur — O delator do caso do Mensalão do DEM, Durval Barbosa, tem parcelado as revelações, o que aumenta a midiatização. A que isso serve nas investigações? Celso Vilardi — A delação premiada precisa ser regulamentada. Hoje ela é praticamente uma manchete consagrada nas leis, mas não há uma regulamentação que diga como ela deve ser feita ou em que momento deve ser juntada aos autos. Que a delação premiada é um instrumento viável, eu não tenho dúvida. Ela pode ajudar na apuração de crimes, e ser usada por determinado acusado a seu favor, o que é legitimo. Se isso é moral ou não é outra questão, mas ele pode fazer isso. Embora faça parte do meio processual, a delação deve ter forma. O que não pode é ficar escondida, e a defesa ficar sabendo de sua existência no fim do processo. Deve ser objeto de contestação por parte da defesa do sujeito que foi delatado, que tem o direito de produzir provas a seu favor. Porque se o delator vai ter um beneficio, esse benefício tem que estar atrelado ao fato de ele ter dito a verdade. Eu já tive processo em que verifiquei a delação só na sentença. Ela nunca havia aparecido antes. ConJur — Revelações a conta-gotas, como essas do Mensalão do DEM, não servem mais a conveniências políticas que às investigações?

Celso Vilardi — Apesar de haver lei para punir esse tipo de revelação, porque isso é vazamento de dado sigiloso, esse é um problema que a experiência demonstra que ninguém consegue controlar. Em todas as operações houve revelações como essas, e em todas elas percebe-se que existe um certo método. Vai-se revelando na medida certa para se atingir determinado objetivo. Isso é muito ruim, porque é naquele fato que a acusação está se baseando, e que pode não ser verdade. Compromete-se a reputação de pessoas que, depois de absolvidas, não conseguem resgatar suas imagens.

ConJur — Além do político, o conceito de que o rico também é sempre culpado fica evidente? Celso Vilardi — Uma vez fui chamado para uma operação em um apartamento em Higienópolis. Fui comunicado às 6h da manhã, e devo ter chegado umas 7h ao local. A Polícia Federal estava na porta, aquela bagunça. Entrei no prédio, cumprimentei o pessoal, disse que era advogado do investigado. Daí um garoto abriu a porta do prédio para mim e chamou o elevador. Eu entrei, apertei o botão do andar e vi que ele não apertou nenhum. Então ele disse: “o senhor é advogado?” Eu respondi que sim. Ele continuou: “esse cara tem muitos carros. Eu sempre achei que tinha alguma coisa errada com ele”. Ou seja, o menino de 13 ou 14 anos já nem estava querendo saber por que a pessoa estava sendo acusada. Para ele, era óbvio que o sujeito era culpado porque, para ter tantos carros, tinha que fazer sacanagem. Essa é a visão da sociedade.

ConJur — Quanto o fato de ser rico ajuda a ter uma boa defesa? Celso Vilardi — Os precedentes do STJ a respeito de interceptação telefônica, por exemplo, envolvem um monte de desconhecidos, gente pobre. Eu fui ver os precedentes. Tem um referente ao caso de um pequeno traficante, outro que tratou de um sujeito que vendia drogas em uma barraquinha de cachorro-quente. Só que quando um processo com repercussão na mídia termina com a absolvição, todo mundo atribui a decisão ao fato de o acusado ter dinheiro. A história do grampo não é de decisões apenas para ricos, mas também para pobres. É claro que todas elas envolvem um advogado bom, que suscitou a tese. É mais fácil você se salvar em uma operação do coração com um médico melhor. É mais fácil se ter sucesso em um implante dentário com um dentista bom. É mais fácil você descobrir um problema no cérebro se quem faz e analisa a tomografia é bom. Tem gente que morre na fila do SUS, mas é difícil isso acontecer no [Hospital Albert] Einstein. A Justiça não é diferente da área da saúde. Morre gente na fila do SUS, e tem gente inocente presa. A defesa é cara. É preciso ir a Brasília para sustentar um pedido de Habeas Corpus, distribuir memoriais, tirar cópias de pareceres. Obviamente, tem muita gente que não chega ao Supremo porque não tem condição de chegar. Porém, com o Habeas Corpus eletrônico, que ainda não está funcionando completamente, vai haver uma democratização.

ConJur — De onde veio o interesse pelo Direito Criminal? Celso Vilardi — Antes de eu entrar para o curso, ouvi na Rádio Jovem Pan o criminalista Evandro Lins e Silva fazendo o Júri do caso Doca Street [condenado pelo assassinato da namorada Ângela Diniz, em 1981]. Eu coloquei na cabeça que, quando crescesse, queria ser igual ao Evandro Lins. Havia um charme maior no Júri porque não havia essas chacinas, essa banalização da vida. Eram casos de violenta emoção, traição etc. É muito mais difícil fazer Júri hoje, porque os jurados estão vendo violência gratuita todos os dias.

ConJur — Como foi o início na advocacia? Celso Vilardi — Comecei a advogar com 23 anos de idade, sozinho. Até cheguei a ter uma sociedade, mas na área penal quem atuava era só eu. Então saí dessa sociedade e montei a minha própria. Contratei um advogado, um estagiário, depois dois advogados. Sempre fui o mais velho, hoje estou com 43 anos. Então, a responsabilidade de tomar decisões era sempre minha. Não se pode imaginar o que é isso no Direito Penal. Só sabe o que é isso o médico oncologista, porque a advocacia criminal é prima de primeiro grau da oncologia. Em uma se lida com a liberdade das pessoas, e na outra, com a vida. As ansiedades são as mesmas. O cliente do criminalista pergunta: “eu vou ser preso?”, e o do oncologista quer saber se vai morrer. Às vezes o médico diz: “sim, você vai morrer”, assim como às vezes também tenho de dizer: “sim, você vai ser preso. Vamos fazer a melhor defesa possível, mas há grande probabilidade de você ir para a cadeia”.

ConJur — Sempre trabalhou na área penal? Celso Vilardi — Sempre fiz estágio na área penal. A primeira experiência foi advogando no tribunal do Júri. Eu não tinha o que fazer, não tinha clientes, então eu fazia Júri para o Estado, de cinco a sete por mês. Passei assim durante dois ou três anos. Duas colegas de turma na faculdade trabalhavam no escritório Mattos Filho, e começaram a indicar meu nome para atender clientes da banca, que é essencialmente empresarial. Foi quando fiz contato com o público para o qual eles me indicavam. Então fui me afastando do Júri, para atender clientes da área empresarial. Hoje estou muito afastado do Júri. Até tenho alguns casos, mas são poucos. Tenho até mais casos em que atuo como assistente da acusação do que como defensor. ConJur — Qual foi o primeiro grande caso? Celso Vilardi — O primeiro que ganhei foi o do Banco Pontual, no STJ também. Daí a carreira foi crescendo. Tenho 20 anos de formado. Em 2007 apareceu um presente de Deus na minha vida, que foi o Márcio Thomaz Bastos. Foi o [também criminalista] Arnaldo Malheiros quem me aproximou do Márcio. E ele passou a me indicar para alguns casos, fora aqueles em que nós trabalhamos juntos. Foi importante em todos os aspectos, não só por trabalhar em causas grandes. Na maioria delas, foi ele quem me indicou.

ConJur — Como é dizer ao cliente que ele vai ser preso? Celso Vilardi — Você tem que dizer. Perco muitos clientes porque falo a verdade. Dizia meu pai que é melhor passar dois minutos de cara amarela, do que ficar duas semanas de cara vermelha. O cliente deve entender que pode conseguir uma pena menor, e esse é um dos motivos de se ter um bom advogado. É ter a pena justa. Não existe mágica na advocacia criminal. Existe um processo, existe um código, uma prova, análise e leitura de documento por documento, e uma solução que depende da prova. Às vezes, uma testemunha diz: “eu menti doutor, falei que era ele, mas não era”. E o caso que estava perdido não está mais. Pode surgir um elemento novo no processo ou, num caso difícil, se descobrir uma nulidade.

ConJur — Prestígio é proporcional a dinheiro? Celso Vilardi — Prestígio vem de seriedade. Você pode até não ser um advogado conhecido, mas se faz um trabalho sério, uma sustentação correta, o juiz reconhece, o procurador reconhece, o tribunal reconhece. Uma pessoa que escreve mal, com erros de português, que tem uma interpretação absurda do texto legal, que inverte fatos, que oculta, que muda, fica marcada. E é claro que quanto mais prestigiado você for, haverá uma clientela maior, e uma recompensa maior em dinheiro, como em qualquer profissão.

ConJur – O que significa para o advogado ganhar ou perder? Celso Vilardi — Vou contar uma história. Advogado novo, fui defender um cara acusado de estuprar e assassinar uma garota. Ele estava preso, mas não havia provas conta ele. No dia do julgamento, quando fui conversar, ele disse: “doutor, é o seguinte: eu sou o bandido do bairro, assumo o que faço. Sou estuprador e sou ladrão. O senhor viu minha folha? De todos os casos que estão lá, eu sou culpado. Mas este aqui não fui eu. Sabe como é: eu sou o bandido do bairro, colocaram nas minhas costas. Uma sacanagem.” Eu pensei: “esse cara é sincero”. Não tinha prova contra ele. Fiz a defesa, gritei, chorei. Mas o resultado do Júri foi 7×0. Ele foi condenado. Não havia provas, mas ele estava sendo condenado pelo seu passado: estuprador, ladrão, homicida. Disse a ele: “fulano, você foi condenado: 7×0. Você viu que eu fiz o melhor que podia, mas seu histórico prejudicou”. Voltei para o plenário com uma cara de derrota, triste. Foi uma tremenda injustiça com o meu cliente, ele iria ficar preso por algo que não fez. Ele percebeu a minha tristeza e, antes de ir embora, deu um tapinha nas minhas costas. “Doutor, fica frio. Fui eu mesmo que matei a menina.” E foi embora. Eu não dormi aquela noite. Fiquei pensando: “e se eu absolvo esse cara? Ele disse que não tinha matado a menina”. No dia seguinte, encontrei o promotor, que eu conhecia do tempo em que fiz estágio no MP, e fomos bater um papo. Eu contei o que aconteceu. “Estou arrasado”, disse. Ele respondeu: “você é burro, rapaz. Você não é juiz. Imagine se você poderia absolver alguém? Quem absolve é o jurado. Advogado é para defender. Você fez uma boa defesa, tem que continuar seu trabalho”. Isso me ajudou muito. Porque eu tinha ficado com aquele pensamento: “E se eu o absolvo?” Advogado não absolve ninguém. Advogado defende.

Alessandro Cristo é editor da revista Consultor Jurídico Revista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2011.

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