Contudo, a jurisprudência pátria entende que o agente deve ser punido apenas pelo estelionato, já que o falso foi o crime-meio, utilizado para cometer o crime-fim – o estelionato. É a chamada consunção, pela qual o crime-fim absorve o crime-meio. Nesses termos é o entendimento sumulado no Superior Tribunal de Justiça (STJ): quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido.
Pois bem. Com base nesse singelo exemplo é possível discutir se o contribuinte brasileiro que mantém divisas no exterior deve ser punido pelo crime de evasão de divisas e pelo crime de sonegação fiscal, mesmo quando o objetivo da remessa ao exterior é, apenas e tão-somente, sonegar tributos.
Poderá pensar o leitor que a discussão não tem qualquer utilidade, pois, em qualquer caso, praticou-se um crime, ou mesmo, como diria o Ministério Público, tanto a sonegação como a evasão foram consumadas e o agente deve ser punido pela prática dos dois crimes.
A discussão, no entanto, é de extrema relevância, e inclusive será tema de debate do 12° Seminário Internacional de Ciências Criminais, organizado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), que acontece de amanhã até o dia 1º de setembro.
Se o crime for de sonegação, o pagamento do tributo antes de iniciado o processo penal extingue a punibilidade. Se, no entanto, se entender que ocorreu evasão de divisas, acompanhada, ou não, de sonegação, o pagamento do tributo não impede o processo penal.
Quer me parecer que, atualmente, a expressiva maioria das pessoas que possuem dinheiro no exterior, sem o declarar às autoridades, o fazem por questões meramente fiscais. Nesse sentido, é de lembrar que quem possui dinheiro não declarado à Receita Federal na sua conta corrente, no Brasil, será automaticamente denunciado pelo controle da CPMF. Sendo assim, parece-me óbvio que, se alguém decidiu praticar o crime de sonegação, pode optar pela remessa do dinheiro para o exterior.
A maioria das pessoas que tem dinheiro no exterior, sem o declarar, o fazem por questões meramente fiscais
É evidente que só é possível cogitar-se dessa hipótese quando o agente não praticou qualquer outro crime além da sonegação. Caso contrário, não é possível afirmar-se a existência da evasão de divisas, como também será possível, em determinados casos, cogitar-se de lavagem de dinheiro. É que, nessas hipóteses, a remessa pode ter escopo de ocultar o produto de crimes graves.
Mas, na hipótese de que ora se trata, o agente remete dinheiro com o único fim de não declará-lo às autoridades fiscais, não sendo justo que seja punido pelos dois crimes. Mais correto é que seja punido pela sonegação, que era o seu único objetivo, e, sendo assim, que tenha a possibilidade de pagar o tributo devido para evitar o processo penal, como permite a lei brasileira.
Tudo seria simples não fosse o fato de não haver precedentes no sentido de o crime de evasão de divisas ser absorvido pelo crime de sonegação fiscal. Isso porque, segundo o entendimento atual, os delitos seriam distintos – o primeiro protegendo a integridade do sistema financeiro nacional e o segundo, a ordem tributária – e, além disso, o normal é o crime menor ser absorvido pelo maior, e não o contrário. No nosso caso, a evasão é o crime mais grave, já que sua pena máxima é de seis anos de reclusão, enquanto que o crime de sonegação tem pena de cinco anos.
Nada disso, no entanto, me convence, até porque não são poucos os juristas de escol que admitem o crime menos grave absorvendo o mais grave, em casos específicos. Importa, a meu ver, verificar a intenção do agente.
A reforçar tal raciocínio é de verificar que o crime de evasão de divisas foi criado em 1986, época em que o câmbio era rigidamente controlado e remeter divisas para o exterior era encarado como um atentado à higidez do sistema financeiro nacional. Hoje, no entanto, há um regime de câmbio liberal e qualquer pessoa pode remeter divisas ao exterior, desde que o declare ao Banco Central do Brasil (Bacen) e à Receita Federal. Ainda, a Receita Federal admite que o contribuinte retifique suas declarações, pagando o tributo devido, sem que isso se traduza em processo criminal, pelo crime fiscal.
Sendo assim, o entendimento atual de que o suposto crime contra o sistema financeiro remanesce deve ser alterado. Cabe-nos lutar por isso, já que a causa é razoável. Tanto é assim que uma das únicas conseqüências da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Banestado foi a apresentação de um projeto de lei com proposta de anistia para quem mantém dinheiro no exterior sem ter cometido qualquer outro crime, tal o número de pessoas flagradas nessa situação. O projeto, no entanto, não prosperou, ao menos até o momento.
Sem a anistia e sem alterar-se o atual posicionamento, milhares de pessoas serão condenadas, o que não faz sentido em um país que tem por tradição desculpar o sonegador pelo pagamento do tributo devido. Se é correto, ou não, desculpar o sonegador, não é tema para este artigo. Basta, por ora, constatar que todos os sonegadores são perdoados quando pagam seus tributos, sendo razoável aplicar a norma a quem sonega por meio da manutenção de recursos no exterior.
Celso Sanchez Vilardi é advogado criminalista, mestre em direito processual penal e coordenador e professor do curso de especialização em direito penal econômico da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (GV/Law)